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Um olhar para a singularidade

Por Dioneia Gaiardo

Pensar a singularidade é um exercício de ver que “A vida insinua-se de um jeito único na subjetividade de cada pessoa, lugar privilegiado para decifrar os enigmas da natureza (…)”, os enigmas de sua própria natureza, da natureza das coisas e do mundo. Aí, no fenômeno da singularidade, há espaço para o “exótico aparecimento” e quem sabe por esses caminhos possamos acessar alguma identidade, alguma integridade sobre quem somos, um pouco mais leves das bagagens impostas.


Há quem busque comparações e generalizações ao longo da vida, há quem se adapte bem a esse modo de ser e ver as coisas, de ler o mundo através de termos gerais. Há quem se sinta completa ou parcialmente preso por essas tipologias, classificações e diagnósticos e, no entanto, careça de um outro tipo de olhar, o singular, ainda ofuscado, escondido em algum recanto seu ou do mundo, e sabe que algo em si fica sem espaço para transbordar diante de uma sociedade viciada em padrões, muitas vezes camuflados em discursos sobre valorizar a diversidade ou afirmações como “devemos ser diferentes”. Não devemos ser diferentes, já o somos e sempre seremos. Por mais que possamos compartilhar, ainda assim, as circunstâncias e significações são únicas.

Se não nos damos conta disso, o risco é nos tornarmos reféns da produção do igual imposta pelos padrões de normatividade que gera também a necessidade de sermos diferentes. E “essa vida” que nos joga de um lado a outro, que nos suprime em padrões convencionados/impostos é a mesma que nos obriga a sermos diferentes para que possamos, enfim, sermos reconhecidos. Antes ser um desconhecido na multidão, mas que conhece, ao menos um pouco, a si mesmo. Antes perceber que a produção do igual e do diferente está a serviço de mercados extremamente lucrativos – o mercado humano, da mente humana, do corpo humano…


Nesse sentido, a Filosofia Clínica evidencia que “As coisas podem adquirir propriedades diversas no vislumbre das singularidades”. Assim, a carência, o que nos falta, parece-me que é justamente o exercício da singularidade. O olhar extraordinário, surpreso, suspenso, desacomodado, incerto, investigativo, descontente, absurdo, instigante, mágico, ingênuo, a admiração, como diria Gerd Bornheim: “Na admiração, verifica-se um simpatizar, no sentido etimológico da palavra, um sentir unido ao real como uma presença (…) longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença.”

* Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica. Para edição completa da revista, acessar Revista da Casa da Filosofia Clínica – Editora Pragmatha

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A TERAPIA SIMPLES

Por Fernando Fontoura

Depressão, ansiedade, dificuldade de concentração, relacionamentos dificultosos, problemas internos de autoconhecimento, problemas de relacionamento em qualquer nível – trabalho, afetivos, escolares etc. – síndromes e transtornos de comportamento ou de pensamento, qualquer coisa que se ouve ou se vê por aí que leve uma pessoa a procurar um terapeuta, seja psicólogo, psicanalista ou das terapias complementares, a filosofia clínica atua de forma mais ampla e simples. Como assim?


Mais ampla porque compreende o funcionamento que está por trás do comportamento da pessoa. A estrutura subjacente que apoia os comportamentos indesejáveis, sejam mentais ou no mundo, a filosofia clínica compreende de forma ampla e por isso tem uma visão panorâmica e abrangente dos modos de ser e de pensar da pessoa.


Mais simples porque a metodologia não contempla teorias de personalidade, de comportamentos, de natureza humana ou de normalidade, mas simplesmente compreende o outro a partir de suas próprias características e jogos de significados e linguagens que ele mesmo traz. Esses fenômenos que aparecem a partir do outro são traduzidos para ele de forma mais clara, ampla e “funcional” ao invés de falar de teorias ou “teses” comportamentais ou diagnósticos “científicos”.


O que a filosofia clínica alcança em compreensão dos modos de ser e de pensar do outro ainda nenhuma outra terapia alcançou, ou alcançam em separado, uma aceitando a linguagem própria do outro e outra tentando compreender o funcionamento dos modos de ser e pensar, mas separadas uma da outra.


A noção de conjunto que a filosofia clínica proporciona ao compreender a estrutura interna do outro dentro de sua apropria história de vida e suas representações de mundo proporciona a quem entra em contato com ela uma maior assertividade nas suas questões. Isso não quer dizer sempre que seja uma terapia rápida, pois o tempo terapêutico varia de acordo com cada um e de acordo com as questões que surgem, mas, independente do tempo terapêutico, a forma de autoconhecimento ou de atuação frente às questões que aprecem são mais amplas e assertivas.


O que cada um procura na terapia, o seu bem-viver seja ele o que for, tem prioridade em filosofia clínica pois aquele que faz sua terapia é sempre, do começo ao fim, a referência principal no processo terapêutico.

CORPORATIVISMO TERAPÊUTICO

Por Fernando Fontoura

Semana passada apareceu nas redes sociais o comunicado do conselho federal de psicologia combatendo a constelação familiar. Seu desagrado é que psicólogos não podem usar de recursos metodológicos fora da psicologia ou que não tenham sido aprovados ou reconhecidos pelo conselho. E alguns ou muitos psicólogos se bandearam para o uso de constelação familiar como alternativa metodológica de atendimento terapêutico.


O conselho de psicologia já entrou em combate com o coaching, com a medicina (pelo ato médico) e agora com a constelação familiar.


Dentre esses embates, dois argumentos são os que mais aparecem: 1) práticas não reconhecidas pelo conselho de psicologia, neste caso a constelação familiar e 2) práticas ou metodologias terapêuticas que não têm comprovação ou evidências científicas.
Sobre o primeiro, em uma decisão judicial (https://www.conjur.com.br/2012-jul-23/conselhos-profissionais-nao-podem-legislar-pesquisa-educacao ) o juiz foi contrário ao pedido do conselho de psicologia ao denunciar e cassar o registro de uma psicóloga que havia usado, segundo o conselho de psicologia, de práticas não reconhecidas pelo conselho. A advogada da terapeuta afirmou, “O conselho também ignorou o fato de inexistir uma lei que estabeleça um rol de técnicas reconhecidas”. Bem, esse é um problema interno do conselho em relação aos psicólogos e psicólogas que estão registrados.


Sobre a segunda questão é a que me interessa enquanto terapeuta do mundo das terapias. Se a psicologia acusa as outras metodologias ou técnicas terapêuticas de não serem científicas, isso quer dizer que eles se arrogam científicos. Mas por quê? O que os torna científicos? O que torna as outras metodologias não-científicas ou, como afirma um psicólogo do YouTube, Daniel Gontijo, pseudocientíficas? E por que a psicologia é uma ciência? Em que sentido isso pode ser considerado?
São muitas questões e não poderei tratar de todas aqui. Mas vou tentar resumir minhas premissas e meu argumento.


As teorias humanas que aderiram à medicina (ou à ciência, como o behaviorismo ou o mecanicismo de Descartes), tentaram objetivar algo que é subjetivo: o comportamento humano e seu fenômeno existencial (como suas causas também). Ao fazerem isso, erroneamente, tratam a subjetividade com parâmetros objetivos. E como a coisa subjetiva sempre escapa às determinações objetivas, mais ferramentas, pesquisas, modelos e tipos são usados para objetivar a subjetividade humana. O DSM é o cúmulo desse pensamento.
O que é objetivar algo? É tratar esse algo como determinado e, por isso, previsível. No dicionário de filosofia está assim, “Qualquer doutrina que admita a existência de objetos (significados, conceitos, verdades, valores, normas, etc.) válidos independentemente das crenças e das opiniões dos diferentes sujeitos”. Em princípio, algo bom e do qual se deve buscar. Mas nas ciências naturais. Não nas humanas. Esse objetivismo é uma forma de abordagem aos fenômenos da física, da biologia, da química, da astronomia, não dos fenômenos humanos individuais, sociais ou éticos.


Ao objetivar algo subjetivo, como o comportamento humano em sua forma mais ampla, também se acaba por “objetificar” o ser humano. E objetificar já não é algo tão bom. Objetificar é tratar algo com um objeto, no sentido de que este objeto é manipulável, condicionado às manipulações do sujeito, como um motor de carro ou qualquer outro objeto físico. E isso não é maneira de tratar o humano e as humanidades.


A psicologia quer ser científica neste sentido? Sim e não. Sim quando ela matematiza cada vez mais o comportamento humano e torna manifesto em estatísticas. As estatísticas e números não manifestam o real, mas modificam a epistemologia ao representarem o subjetivo em parâmetros objetivos. Usam da “razão matemática” para alterar a compreensão dos fenômenos e então sustentar certas perspectivas “objetivas” do humano. Ou seja, alteram completamente o viés de compreensão do humano e não, o “revelam”. Ao contrário, escondem.
A psicologia não quer ser científica quando trata o ser humano através não de diagnósticos diretos, como o DSM da psiquiatria, mas realizam “pareceres” sobre o paciente. No entanto, o objetificam de outra forma quando usa de conceitos psiquiátricos que se dizem objetivos e médicos, o que é uma falácia. Então, nesta perspectiva mais “humanista” da psicologia, ela acaba por também objetivar o humano e o trata através da perspectiva das ciências naturais, via conceitos psiquiátricos.


Portanto, mesmo que a psicologia tente se dizer científica e ao mesmo tempo subjetiva, está cada vez mais se bandeando para o lado “médico objetivo” da psiquiatria, portanto, objetificando o ser humano e seus comportamentos.


E por que a psicologia fala em evidência científica? Evidência é um critério de verdade, tem a característica de ser objetiva frente a um fato. Mas o que torna um estudo ou um indício uma evidência? Ou seja, uma verdade objetiva? Somente o conhecimento baseado em dedução. Na ciência dedutiva o particular deriva do universal. O universal é necessário, portanto a conclusão também é. Necessário é aquilo que não pode não ser ou não pode ser diferente do que é. Assim cria-se o determinismo comportamental ou a previsibilidade daquilo que é imprevisível ou afeito às contingências, que é a vida humana. Portanto, a psicologia (e nenhuma terapia sobre o humano) não é uma ciência dedutiva e então não pode se arrogar necessidades comportamentais ou previsões objetivas sobre o ser humano.


Se a psicologia for ciência ela é no máximo uma ciência indutiva. Na ciência indutiva vai-se do particular ao universal. Lida com fatos contingentes. Não tem valor demonstrativo (apodítico), ou seja, que não se pode refutar, discutir, colocar em causa. Portanto, não trabalha com evidências, mas com indícios. Trabalha com regularidades a partir da observação dos fenômenos a posteriori, por isso é refutável e aberta a revisões. Não tem, assim, nenhuma relação com a verdade ou o conhecimento no sentido universal, mas somente com a verdade e o conhecimento particular, ou seja, limitado a certas regularidades ou critérios.


Se a psicologia é uma ciência indutiva, por que as outras também não podem ser? Toda indução é limitada e refutável, por que então a briga da psicologia com qualquer outra terapia ou metodologia que apareça? Porque ameaça seu corporativismo. Porque ameaça sua existência enquanto conselho político e de poder. Imagine se os psicólogos pudessem, sem qualquer controle político ou de polícia do conselho, usar de outras metodologias que não a própria psicologia ou as “reconhecidas pelo conselho” (que, vamos lembrar, não há essa lista)? A psicologia enquanto profissão controlada pelo conselho seria abalada e perderiam seus poderes políticos e financeiros.


Só para deixar registrado, antes que um dia a psicologia queria vir bater na filosofia clínica – se um dia a filosofia clínica crescer o bastante para incomodar a psicologia, o que penso que ainda está muito longe -, a filosofia clínica não é ciência, não trabalha com “evidências científicas” (seja o que for que a psicologia entenda por isso), na se arroga a um conhecimento universal ou total e objetivo sobre o fenômeno humano e não está interessada em corporativismo de polícia ou de poder sobre os terapeutas. A filosofia clínica nasceu libertária e emancipadora em todas as suas perspectivas, tanto do partilhante, ao ser compreendido em sua própria singularidade, quanto dos terapeutas ao estarem continuamente na contramão das terapias existentes e socialmente aceitas hoje em dia.


Caro conselho de psicologia, continue brigando com outras terapias e metodologias enquanto trabalhamos na margem desse horizonte e, a partir desse lugar, emancipamos e somos emancipados de todo esse imbróglio político.

FILOSOFIA E FILOSOFIA CLÍNICA: RELAÇÕES E DIFERENÇAS – PARTE 1

Por Fernando Fontoura

Mas se afinal a filosofia clínica é inspirada na filosofia, qual a diferença entre filosofia clínica e as outras terapias filosóficas?


Bem, essa é uma questão interessante. Iniciarei falando da relação de semelhança. Enquanto terapia filosófica, a filosofia clínica e as outras, não trabalham com diagnósticos ou tipologias das psis, seja perfil, personalidade ou aquelas aberrações do DSM da psiquiatria. Neste ponto, terapias filosóficas e filosofia clínica convergem.


No entanto, na prática terapêutica, elas divergem. Pois as terapias filosóficas, de modo geral, trabalham com as teorias ou conceitos filosóficos tais quais são estudados ou trabalhados nos filósofos dos quais se inspiram. Neste sentido, elas “encaixam” seus clientes nessas teorias ou conceitos. E é a partir deles que elas percebem o outro. A singularidade, neste momento, já se perdeu.


A filosofia clínica tem sua fundamentação metodológica na filosofia, mas não traz dela as teorias e conceitos propriamente ditos. Empresta delas algumas expressões ou percepções dos filósofos para uma prática terapêutica da qual esses conceitos ou filósofos não estavam procurando.


O que importa aqui não é o conceito ou teoria, mas como se pode adaptar na prática terapêutica esses conceitos ou teorias. O que importa é manter o espaço à singularidade, por isso a linguagem e os conceitos em filosofia clínica são formais e não trazem em si nenhuma teoria valorativa ou normativa. Os conceitos ou teorias emprestadas da filosofia são, digamos, esvaziados em seu conteúdo normativo ou valorativo para que a forma possa ser preenchida por cada partilhante.


Por exemplo, o tópico um da estrutura de pensamento da filosofia clínica se chama como o mundo parece. Não há neste tópico (como em qualquer outro) nenhum conteúdo de “como” deve ser o mundo para cada partilhante ou para alguns deles ou para todos. A República do estoico Zenão ou de Platão são escritos a partir de como o mundo parece para eles. Assim como o Manifesto Comunista de Marx ou o Leviatã de Thomas Hobbes. Percebendo que muitos filósofos escreviam sobre isso, Lúcio Packter, o sistematizador da filosofia clínica, observou que isso poderia ser um lugar, um topos ou um tópico de onde a pessoa descreve a si, o mundo ou os outros.


Nenhuma normatividade ou valor está inserido neste tópico (nem em nenhum outro), mas apenas identifica que quando uma pessoa narra muito sobre o mundo, sobre a vida, sobre as pessoas em geral ou o universo está narrando a partir do tópico como o mundo parece.
Isso é completamente diferente do que as terapias filosóficas fazem e muito diferente do que a filosofai faz. Pois neste tópico (como em qualquer outro) não um certo ou errado, apenas uma identificação de onde a pessoa se expressa.


Na questão entre a filosofia clínica e as outras terapias filosóficas, penso que essa é uma das grandes diferenças. E essa diferença resguarda aquilo que é fundamental em filosofia clínica, a singularidade.


Em outras oportunidades indicarei mais sobre as diferenças e semelhanças entra filosofia clínica e a filosofia. Por enquanto, podemos aqui demarcar essa fronteira clara entre as terapias filosóficas e a filosofia clínica no que concerne ao resguardo da singularidade.

A PERSONALIDADE ENQUANTO SINGULARIDADE EM FILOSOFIA CLÍNICA?

Por Fernando Fontoura

A personalidade como um conjunto de características ou modos de ser de uma pessoa tem como foco o conteúdo próprio dessas características e desses modos de ser. Esses conteúdos têm como origem o diálogo ou relacionamento que a pessoa teve e tem com o seu entrono mais imediato e as influências desse horizonte mais próximo foram as condições de possibilidade para ele formar sua personalidade. Pessoas, lugares, livros, instituições, ideias e muitas outras coisas contam como seu entrono imediato. Neste sentido, a pessoa é o que pode ser dentro deste horizonte imediato. Por mais amplo que seja esse entorno, a personalidade se forma a partir dele e não além dele.


Na filosofia clínica pensamos mais ou menos assim também. É dado que os tópicos da estrutura de pensamento mais os submodos (modos de ser) mais as categorias dos exames categoriais formam o que chamamos de padrão autogênico ¬- que é justamente essa noção de conjunto que o terapeuta tem da totalidade do que aparece de predominante no processo terapêutico do partilhante – são esses e não outros em função do contato, do diálogo, da comunicação com o horizonte existencial imediato de cada um.


No entanto, a diferença é que a singularidade em filosofia clínica, que é o padrão autogênico mais as circunstâncias históricas de cada pessoa, não é o mesmo que personalidade. A personalidade é a expressão do padrão autogênico. A filosofia não pára na personalidade, mas vai além, vai na especificidade dos elementos formais dessa personalidade, que são os tópicos da estrutura de pensamento e os submodos. A psicologia trabalha com perfis. A psicanálise com caráter ou personalidade, a psiquiatria não trabalha com nada porque não é terapia mais. Perfis, personalidade, caráter são formas de trabalhar diretamente o conteúdo do que aparece, no entanto esse conteúdo não está no vazio, mas, para a filosofia clínica, é uma expressão das formas de pensamento e de modos de ser. É neste nível de precisão e detalhe que vai a filosofia clínica. Comportamentos, perfis, personalidade podem ser comparadas umas às outras, pois são modelos de tipologias. Mas se formos um nível além, como vai a filosofia clínica, encontraremos aquele padrão autogênico próprio de cada um, ou seja, sua singularidade.


Portanto, a personalidade ou caráter não são equivalentes à singularidade em filosofia clínica. Não trabalhamos com personalidades, com caráter, com perfis. Trabalhamos no nível da singularidade, à qual nenhuma tipologia é possível ou necessária. A metodologia da filosofia clínica exige do terapeuta uma postura amplamente fenomenológica (deixar aparecer o outro) a e compreensiva (e não interpretativa) para que, com o andar da terapia, o padrão autogênico de cada um possa aparecer e fazer surgir a singularidade.

A TOTALIDADE DO INDIVÍDUO

Por Fernando Fontoura

A abordagem fisicalista do ser humano perde de vista a relação da mente como causadora dos efeitos físicos. A abordagem mentalista perde de vista a relação do corpo como causador de emoções e pensamentos. Essa dualidade de elementos não é uma dualidade, mas uma relação de bidirecionamento, de implicação bidirecional.


Obviamente que alguns pensamentos e moções alteram o estado físico/biológico do indivíduo, mas também algumas questões físicas/biológicas afetam pensamentos e emoções. Neste último, por exemplo, o cansaço físico extenuado pode gerar irritabilidade e falta de paciência tanto quanto emoções negativas. No primeiro, interpretações do cotidiano podem alterar os pensamentos e sentimentos fazendo com que alguém tenha uma alteração no seu comportamento físico/biológico.


O reducionismo ontológico sobre a natureza física ou mental do indivíduo só prejudica a compreensão de sua totalidade ou integralidade. Aristóteles já afirmava que dizer que a alma se irrita não é uma boa frase, pois não é a alma ou o corpo que se irritam, mas o indivíduo como um conjunto. Sócrates também dizia que se alguém considerar que ele foi até à ágora em função ou pelas condições de seus músculos ou tendões, está certo, mas dizer que os músculos e tendões foram a causa de ele ir até lá, não. Pois a causa, dizia ele, eram suas motivações do pensamento ou emoções, como gostar de se reunir com os amigos ou a vontade de conversar com eles. Os músculos e tendões são as condições de ele ir até lá, mas não as causas.


A psiquiatria biológica utiliza em sua epistemologia ontológica o reducionismo físico e por si só já tem uma compreensão equivocada do ser humano. O idealismo psicológico – no sentido de psicológico enquanto alma ou mente – comete o mesmo erro epistemológico por estar baseado em uma ontologia também reducionista.


Joanna Moncrieff e sua equipe lançaram uma pesquisa que foi publicada em junho de 2022 colocando uma pá de cal sobre a especulação – e sempre não foi mais do que isso, uma especulação, jamais uma teoria e muito menos um conhecimento científico – sobre a relação da serotonina com a depressão. O artigo que mostra a pesquisa é The serotonin theory of depression: a systematic umbrela review of the evidence em https://www.nature.com/articles/s41380-022-01661-0 .


Ela começa afirmando “A hipótese da serotonina na depressão ainda é influente. Nosso objetivo foi sintetizar e avaliar as evidências sobre se a depressão está associada à concentração ou atividade reduzida de serotonina em uma revisão sistemática das principais áreas relevantes de pesquisa”. O que acontece com essa especulação psiquiátrica biológica é que a justificação para a prescrição, venda e uso dos antidepressivos é essa fabulação envolvendo a serotonina – e a fabulação se estende por todas as outras “doenças psiquiátricas” associadas a outros neurotransmissores. Essa crença já está disseminada e naturalizada no mundo da vida onde 80% do público não especializado acreditam que assim é.


O artigo segue o modelo científico de pesquisa e análise e é muito detalhado, inclusive em sua metodologia. E Joanna Moncrieff e sua equipe chegam à conclusão – que não é nova, pois outras pesquisas sérias durante esses 50 anos já mostraram a mesma coisa, mas esta é a mais atualizada – de que “Esta revisão sugere que o enorme esforço de pesquisa baseado na hipótese da serotonina não produziu evidências convincentes de uma base bioquímica para a depressão. Isso é consistente com a pesquisa em muitos outros marcadores biológicos. Sugerimos que é hora de reconhecer que a teoria da serotonina na depressão não é empiricamente fundamentada”. Ponto, nova linha! Ou seja, próximo assunto, pois este está encerrado! Ou deveria estar!


O reducionismo psicológico ou o idealismo dos pensamentos ou emoções também está enviesado e errado epistemologicamente, e também provoca perturbações e, por isso, produz maus resultados. Neste lado podemos colocar o coaching, a psicologia positiva e todas as formas de terapias que reduzem a vida integral – grosso modo, mundo exterior e mundo interior – como resultado somente das formas de pensamento. Isso é um erro epistemológico, por suportar uma falácia ontológica. Tem seus perigos de produzir uma massa de pessoas com sentimentos de fracasso e burnout, ou seja, “pessoas queimadas” em sua hiperprodutividade interna o que as faz ter uma péssima relação consigo mesmas e com o mundo exterior, como consequência.


Essas questões estão à margem da terapia da filosofia clínica. O único pressuposto fundamental dela é que toda experiência que o indivíduo tem, seja mental ou física, passa pelo pensamento. É um pressuposto da metodologia, mas não uma afirmação ontológica ou epistemológica. Sendo uma terapia estruturalista e seu eixo se chama estrutura de pensamento, é ali, nesta estrutura, toda possível reorganização ou reestruturação das questões terapêuticas. Ou essas questões começam na estrutura de pensamento, ou finalizam ali ou passam por ela.


Sendo assim, a integralidade do outro pode se dar tanto pelo pensamento ou mente, quanto pelos modos de ser no mundo, o método não priorizando nenhuma forma ou outra.
É fato que quando uma terapia, qualquer que seja, apela para a natureza do ser humano, ela é uma teoria a priori e já está direcionada para um viés. É exatamente isso que não quer a filosofia clínica. Ela é formal, sem conteúdo prévio, e por isso não tem teoria de nada. Sendo assim o único viés que ela tem é o do próprio indivíduo, ou seja, o da singularidade.

DIAGNÓSTICOS: QUAL O PROBLEMA COM ELES?

Por Fernando Fontoura

Diagnósticos são uma forma de conhecimento que pretende considerar a realidade ou um grupo de particulares da realidade como comuns, uniformes, comensuráveis. Tenta, com isso, desconsiderar ou minimizar a mutabilidade, a indeterminação de um grupo de particulares.
Em termos de filosofia, seria o conceito universal. Neste sentido, é uma ideia ou noção que pode ser partilhada por vários particulares. Portanto, o universal está ao mesmo separado da coisa particular, é, portanto, seu padrão ou critério de avaliação de correção ou de valor ou de “normalidade”, e, ao mesmo, tempo “participa” de cada particular dando a este sua essência ou natureza. Está fora de cada particular, mas define ele.


Na medicina um diagnóstico dá ao particular, um coração, por exemplo, uma noção do que é a doença e qual os procedimentos que devem ser realizados para curar este órgão. Em termos de qualquer atividade corporal ou práticas corporais “corretivas”, o diagnóstico serve como uma aproximação do caso particular, colocando-o dentro de um grupo de conhecimento e, a partir disso, de práticas mais apropriadas a este diagnóstico.


Mas e no comportamento humano? Qual a validade de um diagnóstico ou conceito universal? Ora, há comportamentos humanos que são parecidos em todos os lugares independente da cultura ou do tempo histórico. Quase todos os seres humanos sentem medo ou reagem a ele de modo parecido. Assim o fazem com outros sentimentos como reações à solidão, ao tédio, à alegria etc. Poderíamos, frente a esses comportamentos comuns, estabelecer um parâmetro maior ou menor e colocar as pessoas neste horizonte. Aqueles que reagem ao medo fugindo, aqueles que reagem ao medo enfrentando etc. Para cada grupo de pessoas em determinado conceito universal teriam alguns procedimentos “terapêuticos” parecidos.


Mas de onde vieram esses procedimentos? Da observação e aceitação de várias práticas que já funcionaram em determinados casos particulares. Então, colocado em prática esses procedimentos, dentro de um grupo diagnóstico ou universal, a chance de eles funcionarem para maioria das pessoas é grande. Mas não funcionará sempre bem assim com todos. Por quê? Porque não há como um conceito universal ou um diagnóstico dar conta de tamanha complexidade das questões particulares e dos elementos que estão emaranhados em cada caso. Então, o que fazer?


Para esses casos em que o conceito universal ou diagnóstico não funcionou, tem que se conhecer as características idiossincráticas de cada caso. É exatamente aí que entra a filosofia clínica. A pergunta que faço é a seguinte: por que não ver caso-a-caso sempre? E, ao invés de partir do universal, partir não do particular, mas do singular, do cada-um-por-si-mesmo?
O fato de que independente de muitas ou quase a totalidade das pessoas reagirem parecidas em seus comportamentos em situações parecidas, independente da cultura ou o do tempo histórico, apenas nos mostra que fazemos parte da natureza humana comum a todos nós. Também fazemos parte da natureza cultural da qual nos inserimos e culturas diferentes reagem a situações iguais de formas diferentes em função de seus valores, juízos, normas sociais etc. Além desses dois níveis anteriores – natureza humana e natureza social ou cultural – ainda temos outros, como a cidade, bairro, a família, os amigos, as interpretações de cada experiência, a linguagem etc.

É exatamente aí que chega a filosofia clínica e não chega nenhuma outra terapia. Por quê? Porque diagnósticos e conceitos universais são a primeira ou segunda camada daquilo que nos constitui enquanto ser no mundo. Parar aí, considerar comportamentos parecidos ou “perfis” como a “natureza” ou “essência” de nosso ser no mundo é reduzir muito os níveis de complexidade no qual vivemos e experienciamos a vida.


E definir diagnósticos ou conceitos universais com o nome de “doença”, “transtornos”, “disfunções” não transforma os conceitos universais e diagnósticos em verdades de cada singular, porque esses conceitos continuam na periferia e à margem do ser no mundo.
Os diagnósticos e conceitos universais são úteis em terapias corporais ou que envolvem terapêuticas corporais ou para questões judiciárias e sociais. Alguém fazer parte do grupo de LGBTQ+ não o torna comensuravelmente igual a uma dessas designações. Sua identidade de ser no mundo não está reduzida a um conceito qualquer desses. Existencialmente cada um é muito maior do que os conceitos que usam socialmente para defini-los. No entanto, socialmente, juridicamente, culturalmente é importante defender esses conceitos universais ou particulares contra os preconceitos, a exclusão, a desonra e indignidade humana.


Os diagnósticos como realidade última da essência ou natureza existencial de um singular, é um erro epistemológico, um abuso de setores de poder social – como a psiquiatria e as psicologias de “perfis” – e um desserviço às terapias como a filosofia clínica, que partem sempre do singular em direção ao próprio singular. Não há necessidade alguma de existir, para a terapia da filosofia clínica, qualquer diagnóstico do comportamento ou de “saúde mental”. Tudo o que é idiossincrático em cada singular a filosofia clínica tem a capacidade de apreender, conhecer e interagir sem o uso de conceitos universais ou diagnósticos.

Resenha do Evento da Epoché

Por Dionéia Gaiardo

Na noite do dia 19/01/2023 em uma parceria entre Epoché Filosofia Clínica e Casa da Filosofia Clínica, aconteceu o “1º Encontro Online Epoché: A Prática da Filosofia Clínica” com a coordenação e condução do Filósofo Clínico Fernando Fontoura.
Nessa noite de construções compartilhadas tivemos a honra de ouvir e conversar com o professor Hélio Strassburger, referência em prática clínica no Brasil e porque não dizer, no mundo.


Ele que publicou recentemente o artigo intitulado “Filosofia Clínica e Discurso Existencial” na revista Silex pela UARM, Universidade Antonio Ruíz de Montoya, de Lima no Peru.
Uma das maracas do professor Hélio em sua trajetória tem sido ouvir e cuidar das singularidades postas à margem, internadas, se não em hospitais psiquiátricos, em diagnósticos, tipologias, medicações psiquiátricas que anulam ao invés de revelar as singularidades de cada um.


Em seguida, ouvimos o relato de três alunos do professor Hélio, formados pela Casa da Filosofia Clínica. Fernando Fontoura nos contou como foi importante encontrar a filosofia clínica, em especial o conceito de singularidade e um método que desse conta de fazer essa singularidade aparecer. Fernando agradeceu ao professor Hélio por ter levantado em aula o assunto da antipsiquiatria, o qual estuda e reflete até hoje.


Depois ouvimos Dionéia Gaiardo que contou como foi aprender e descobrir o papel existencial no exercício de ser terapeuta e as marcas da Casa da Filosofia Clínica como o acolhimento do professor Hélio com um abraço na chegada às aulas, o café e os bolos aniversário feitos pelas mãos da Diretora da Casa da Filosofia Clínica e artista plástica , Márcia Baroni.


Por último, ouvimos Miguel Angelo Caruzo, que conheceu o professor Hélio quando este ainda tinha barba preta, enfatizando que sua característica fundamental é o acolhimento com um abraço. Atitude que passou a adotar em seus atendimentos presenciais. Ele ainda ressaltou o caráter emancipatório da Filosofia Clínica, que ocorre tanto com o terapeuta quanto com o partilhante.


A última atividade da noite foi a mesa redonda: O Chão de Fábrica. Um vice-conceito (metáfora) usado por nós filósofos clínicos e filósofas clínicas e que significa a prática da Filosofia Clínica no consultório. A mesa teve a participação de Hélio Strassburger, Fabiano Santos, Paulo Alves Filho, Flora Bonilha, Miguel Angelo Caruzo, Fernando Fontoura, com mediação de Dionéia Gaiardo.


Na conversa foram abordados assuntos caros à prática da Filosofia Clínica tais como as adequações e autogenias (mudanças, movimentos) dos partilhantes, a categoria tempo e seus desdobramentos em clínica, a necessidade da boa redução fenomenológica para que essa singularidade possa aparecer em clínica na versão original de cada partilhante. A conversa seguiu com o tema da aplicação do método da Filosofia Clínica em empresas, experiência compartilhada especialmente pela filósofa clínica Flora Bonilha em sua atuação na área de recursos humanos, além de sua atuação em clínica.


O encerramento da mesa ficou com o professor Hélio que nos ensinou que “Me parece que encerramentos não existem, a vida tem me ensinado, eu tenho aprendido que , que no máximo, a gente coloca uma vírgula para poder seguir por outros caminhos”.


O coordenador da Epoché Filosofia Clínica, Fernando Fontoura e a Diretora da Casa da Filosofia Clínica, Márcia Baroni, agradeceram a presença de todas as pessoas e também as contribuições feitas na “Vakinha” online para o projeto social Altruísmo Eficaz do filósofo Peter Singer.
Fica o desejo e a expectativa do próximo encontro!

CLARABOIA NO TEMPO – Historicizando Momentos

por Ana Rita de Calazans Perine

Redijo essas linhas sob efeito de psicotrópicos pesados. Faço como antídoto, lavagem estomacal redutora de toxinas cotidianamente ingeridas em sociedades insalubres e periculosas para o espírito humano. Esse tem sido o impacto de nosso momento histórico…

Hordas destilando ódio e praguejando sandices aprisionam em si próprios os pais de família, entusiastas profissionais, mães zelosas, amigos atentos, filhos dedicados. O medo abissal anima a fúria que aplaca buscas, fatos, verdades. Anestesia mentes, rouba alegrias, convulsiona relações, petrifica olhares, converte em geleiras corações. Ofusca, mina, aborta perspectivas. Impede que o sol nasça no horizonte.

É como se estivéssemos atados às nossas camas, olhando fixamente para o teto, na esperança de alcançar uma claraboia que permitisse do angustiante claustro nos livrar, ampliar olhares e contemplar…

Corpos fatigados não dão conta de quebrar a maldição do enrijecimento muscular que provoca dor e suspende o sonhar. Dia atrás de dia subjetividades reprimidas fatiam o tempo, absorvem a imposição de papeis que representam, obliteram voz, presença, espaço e momentos.

As cenas não se desenrolam, ações se avolumam, a vida não transcorre… Alheio às suas próprias verdades ou mesmo as reconhecendo, sem força de expressá-las (o que costuma causar ainda maior sofrimento), o ator se recolhe: impossibilitado, violado, vendido.

Não há distopia de plataformas de streaming capaz de superar as que nos atravessam diariamente… Entram em nossas vidas e clínicas sem pedir licença, nos esbofeteiam com agruras de estrondosos silêncios.

Onde falta palavra, costuma sobrar texto… Aí chegamos ao estado, como solo fértil, capaz de nutrir e possibilitar o saudável germinar de indivíduos, organizações e comunidades. Quanto mais distópico os tempos, mais utópicos deveriam ser os momentos…

Para sanar dor, recuperar mobilidade, impostar voz, permitir que ator no centro do palco se apresente em livre expressão, liberto de representações, seu modo próprio há de ser detectado, reativado e experimentado.

As maneiras singulares de lermos o mundo e a nós mesmos e de transitarmos por ambos podem nos brindar com potentes elixires. Bem dosados, aptos a equalizar cor, brilho e luminosidade na medida exata de nossas necessidades, nos permitem trafegar mais leves e plenos nossos dias.

São remédios existenciais que desopilam, desintoxicam, nos fazem resgatar alegrias e prazeres esquecidos. Levantamos de camas, transpomos claraboias, acessamos telhados e neles, sob céus estrelados de agradáveis noites de verão, sem pressa, cuidadosamente revisitamos o ontem, vivemos o hoje e descortinamos o almejado amanhã.

Em desdobramento do metaforicamente exposto, na tentativa de auxiliar o ponderar…

Na última década complexos e multifacetados componentes econômico-sociais e político-ideológicos têm adquirido maior relevância ao situar e determinar traumas, antes episódicos, agora seriais: no trabalho, nas famílias e na sociedade. Essas feridas na memória e no conceito de identidade do indivíduo reverberam na frequência de esvaziamento e fragmentação do eu, aqui traduzido como rapto da “vontade de poder ou potência”, segundo Friedrich Nietzsche, principal força motriz em seres humanos.

Além de mobilizar serviços de acolhimento / apoio, campanhas em defesa da vida e investimentos em pesquisas na área da saúde mental, o fato aquece ainda mais a já frenética indústria farmacêutica: de um lado, assertiva no lobby junto a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a CID (Classificação Internacional de Doenças), hoje na 11ª revisão; de outro, sempre pronta a nos brindar com o que há de mais moderno nas suas unidades fabris. Quiçá sejam criteriosamente reguladas e embasadas por pesquisas clínicas sérias, que não prescindam da legitimação e escuta das subjetividades em questão.

Diante de acentuadas probabilidades em impor consensos, que nos acautele a indagação de Michel Foucault (França, 1926 – 1984 / filósofo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento): “Por que foi que fizemos dos manuais de diagnósticos a bula da vida?”

Paulatinamente a sociedade parece um pouco mais alerta. Ela já expressa a preocupação em ser a CID-11 absorvida pelos profissionais de saúde como base de orientação para identificar tendências e estatísticas na área e não para submeter seres humanos a pecha de rótulos.

Do famoso grito por mais vida de Antonin Artaud (França, 1896 – 1948 / artista plástico, poeta, ator, dramaturgo e pensador) tido como louco e internado por nove anos: “…para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo em real, onde vivem aqueles que vocês encarceraram?”

Nessa hermenêutica compreensiva dos fenômenos que nos chegam e invadem, que monitora prejuízos, não teme dissensos e abraça o diverso, enquanto meta terapia que parte da e se desenvolve na escuta atenta das múltiplas linguagens da singularidade que acolhe, a Filosofia Clínica segue tendo muito a contribuir e aprender. De certo modo, claraboia no tempo de interdições de vidas, consciências e subjetividades… Que nesse exercício possamos movimentar o melhor de nós e crescer não só como profissionais que estamos, mas como humanos aprendizes que somos.

(texto origianlmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/12/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed03-verao-2022.html )

EXPERIÊNCIA COMO PARTILHANTE EM FILOSOFIA CLÍNICA

Por Fernando Fontoura

Desde minha juventude que vou a terapeutas. Na própria escola já ia constantemente ao Serviço de Orientação Escolar conversar com uma psicóloga sobre questões escolares, de inclusão/exclusão, entre outras. Via nestes encontros uma boa possibilidade de pensar a mim mesmo em uma perspectiva mais ampla.

Quando já estava no esporte como competidor, procurando subir no ranking estadual ou nacional, via a importância de uma melhor concentração ou “força” mental. Naquela época não havia especialistas em psicologia esportiva ou algo parecido, então procurei psicólogas ou psicólogos “normais” para tentar me conhecer melhor no aspecto mental.

Depois, na vida adulta, ia a psicólogos ou psicólogas a respeito de questões de casamento ou filhos ou relações de trabalho. Passei minha vida adulta também, em grande parte, fazendo terapia, sempre com psicologias de várias linhas (até de vidas passadas fiz uma época).

Mas quando iniciei minha terapia com um filósofo clínico, em meu pré-estágio – antes de iniciar atendimentos em regime de orientação – que percebi a diferença abissal da terapia da filosofia clínica para as outras que fiz durante grande parte de minha vida.

Não vou esgotar aqui os âmbitos dessa diferença entre as terapias, mas vou apenas indicar quais foram, no meu caso.

A precisão é uma delas. O autoconhecimento que proporciona a filosofia clínica é muito mais preciso, cirúrgico. Por ela ter uma visão abrangente do “mapa” de minha estrutura interna e dos meus modos de ser e pensar, ela consegue ser mais analítica e diferenciar caminhos e limites de forma muito mais clara.

Essa precisão no autoconhecimento é em função de ela descrever com mais minúcias minhas relações comigo mesmo, com os outros e com o mundo. Como assim? Sempre que nos relacionamos com alguma coisa ou com alguém, o fazemos de uma certa forma, com certos elementos e isso define uma certa qualidade dessa relação. Não basta dizer que estou em um “relacionamento tóxico”. A filosofia clínica vai compreender descritivamente quais são os elementos em jogo de minha estrutura interna que estão nesse “relacionamento tóxico”. Isso dá mais precisão aos fatores determinantes de melhora nessa relação. Não há tentativa-e-erro.

E neste sentido, outro aspecto diferenciado da filosofia clínica frente a outras terapias, é o tempo. Com uma análise mais detalhada, mais precisa, o tempo de terapia ou de cada assunto do qual levamos em terapia é encurtado. Às vezes vejo pessoas dizendo que ficaram 5, 10, 20 ou até mesmo 30 anos em outras terapias para “resolver” de forma ampla alguma ou outra questão.

Eu, particularmente, faço minha terapia pessoal semanalmente. Não abro mão. Terapia, para mim, não é somente quando tenho “problemas”, mas é uma atividade de autoconhecimento ampla em todas as fases de minha vida, das piores às melhores. Por isso, eu posso até passar 30 anos fazendo terapia com a filosofia clínica, mas não será para resolver um ou outra questão, mas por ela ampliar sistematicamente e de forma robusta meu conhecimento sobre mim. O fato de ela ser mais precisa e, por isso, muitas vezes, mais rápida na resolução de algumas questões existenciais, não faz da terapia algo dispensável rapidamente. Embora, como terapeuta, eu experiencie a rapidez da filosofia clínica em muitos partilhantes. Eles expressam exatamente isso, “Nossa, fiquei anos e anos em outras terapias e não me conheci tanto quanto aqui em bem menos tempo”.

Obviamente que o tempo terapêutico é o tempo de cada um, mas a prática enquanto partilhante da filosofia clínica me mostrou como esse tempo subjetivo é compartilhado com o tempo da metodologia e que essa mescla faz dessa experiência terapêutica algo completamente diferente do tempo das outras terapias.

A ajuda que a filosofai clínica proporciona não é somente intelectiva, mas existencial diretamente nos modos de ser que temos, tanto de pensamento quando de comportamentos. Ela não “tapa o sol com a peneira” nem “coloca panos quentes”. Pela sua visão ampla de nossa estrutura interna e de nossos modos de ser e pensar, qualquer mudança terapêutica que aconteça nos movimenta de forma robusta, independente do tempo de cada um.

Não há comparativos dos benefícios da filosofia clínica para com as outras formas de terapia, é o que percebo e experencio enquanto partilhante. Em minha vida, tenho muito menos tempo como partilhante da filosofia clínica do que já tive como paciente de todas as outras linhas de psis que já fiz, mas meu ganho com autoconhecimento e autogerenciamento de meus modos de ser é absurdamente mais amplo e robusto com a filosofia clínica.

DOIS MUNDOS NA ESTRUTURA DE PENSAMENTO

Por Fernando Fontoura


Platão estava certo, pois há dois mundos diferentes e (às vezes) complementares: o mundo sensorial ou empírico e o mundo abstrato ou das ideias.


Na Filosofia Clínica há o tópico 3 da tabela da estrutura de pensamento que é o sensorial/abstrato. Neste tópico identificamos o horizonte predominante de onde vem os outros tópicos da estrutura de pensamento do partilhante. Ele pode narrar suas representações de mundo, sua experiência tanto mais por vias sensoriais como abstratas.

Um exemplo de sensorial é quando a pessoa narra sua experiência por palavras que levam em direção aos cinco sentidos, “Nesta semana arrumei todo meu jardim e isso fez um bem enorme para mim. Fiquei mais relaxada e mais feliz comigo mesma. Mas andando no bairro vi algumas pessoas morando na rua, as calçadas cheias de lixo e mal cheirosas e fiquei mais preocupada com esse mundo, para onde ele está indo. Sentei no parque, em um banco perto do lago, e deixei o sol e o vento tocarem em minha pele e logo pensei que a vida é isso aí mesmo, um amontoado de sensações que ora nos deixam mais felizes e ora nos deixam mais tristes”. Esse é um exemplo de narrativa onde a pessoa traz outros tópicos da estrutura de pensamento – o que acha de si mesmo, como o mundo aprece, emoções, pré-juízos – através da linguagem que nos remete aos cinco sentidos. Amar pode ser o toque da pele na pele do outro, ou o caminhar juntos abraçados na areia de uma praia a noite ou saborear um bom vinho em uma noite gelada ao luar enrolados em uma manta.


Mas também a narrativa pode vir de um horizonte abstrato, “Olhando o pôr-do-sol me veio o pensamento de que o ano também está finalizando, de que meus projetos que realizei tiveram muito do que penso de mim mesmo, de minha ideia de como quero viver, de como quero que o mundo pareça pela ideia da liberdade, do respeito pelos outros. Essa noção de respeito a cada pessoa é uma prática que está cada vez menos em moda hoje, em função dessa ideia de individualismo exagerado de que tudo tem que estar centrado em nossos pensamentos e gostos”. Esse é um exemplo do campo da abstração, onde a pessoa, a partir de uma pôr-do-sol sensorial “pulou” para o abstrato e lá fez seus pensamentos liberarem alguns outros tópicos – o que acha de si mesmo, buscas, como o mundo parece, pré-juízos – e é a partir deste âmbito, o abstrato, que ela narra para si e para outros aquilo que está em sua estrutura de pensamento.


Não há um horizonte “certo” ou “errado”, apenas é importante compreendermos em qual desses a pessoa mais navega. E isso também pode variar rapidamente dependendo do lugar, das circunstâncias ou do papel existencial. Quando a pessoa faz um esporte, um jogo de basquete por exemplo, ele exige mais sensorialidade e ali, naquele momento, o tópico sensorial estará mais predominante. Se ela estiver no abstrato enquanto joga, poderá perder a jogada, o ponto. Mas essa mesma pessoa pode estar sentada lendo um romance ou escrevendo uma história. Embora haja o aspecto físico envolvido nessas duas coisas, sua atenção estará mais focada nos pensamentos, nas ideias, no abstrato e não nas coisas em volta dos cinco sentidos. Ela poderá estar absorta em seu mundo das ideias e não ouvir, ver ou perceber ais nada ao redor e se ficar toda hora dando atenção às coisas sensoriais poderá não conseguir efetivar o que estava fazendo.


O que algumas vezes aparece nas terapias é alguém que vive prioritariamente em um desses mundos, tendo que fazer uma ponte comunicativa com o outro mundo, aquele que não é o “seu” mundo prioritariamente. É um Einstein no mundo das ideias sedo pressionado a consertar um cano da pia da cozinha ou um trabalhador braçal tendo que interpretar as ideias de um filósofo qualquer. Às vezes, por questões de valores ou práticas do mundo, é exigido que essas pessoas naveguem mais em outro mundo que não é o “seu” e somente isso já pode ser uma quebra no paradigma do modo de ser dela. Por serem mundos diferentes, muitas vezes as formas, significados e linguagens deles também são muito diferentes.


O filme “O homem que viu o infinito” mostra um pouco disso. O gênio abstrato da matemática, o indiano Ramanujan, tinha todas as suas intuições matemáticas no mundo das ideias, mas foi confrontado a ter que prová-las no “papel”, escrevê-las para poder ser reconhecido. Somente essa diferença de formas de comunicação das verdades matemáticas já foi desestruturante para ele, embora ele tivesse que assim fazer para ser reconhecido como um gênio.


Sensorial e abstrato é um tópico da estrutura de pensamento que traz inúmeras complexidades e diferentes formas de narrativas singulares e um bom terapeuta poderá identificar em qual desses horizontes prioritariamente navega o intelecto ou a malha intelectiva de seu partilhante.