Por Fernando Fontoura
A antipsiquiatria é um movimento social contra as práticas, as justificativas médicas/biológicas, a teoria do conhecimento sobre a natureza humana (seja biológica ou metafísica, sim a psiquiatria – e a psicanálise – tem teorias metafísicas ou ontológicas sobre a natureza humana) e todo o arsenal de tecnologias e conhecimentos que apoiam essa chamada biopsiquiatria ou psiquiatria biológica– neurociência, por exemplo, e fundamentalmente contra a bíblia deles, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou DSM, sigla em inglês).
Neste sentido sou um antipsiquiatra e minha narrativa – como a da antipsiquiatria como um todo – são contra o argumento de autoridade que é investido à psiquiatria no geral, essencialmente a biológica. Argumento de autoridade é um mito, pois somente pode-se estabelecer uma autoridade quando todos concordam com ela. Se há outra autoridade no mesmo assunto que discorde com a premiria, o argumento de autoridade se desfaz. E há centenas e centenas de autoridades fora da psiquiatria ou dentro dela – pois a antipsiquiatria nasceu de um movimento a partir de dentro da psiquiatria, ou seja, de psiquiatras contra a própria psiquiatria – que discordam de forma diametralmente oposta à psiquiatra biológica.
Embora tenha minha prática terapêutica com a Filosofia Clínica, meus argumentos contra a psiquiatria biológica veem da filosofia, à qual também tenho uma estrada de estudos e práticas.
Para começar – o que já é difícil de escolher, pois há tantas formas de argumento contra a psiquiatria biológica que podemos ter mais de um ponto de início, como a linguagem, a lógica, a ética social, a ontologia, a política social e relações de poder, a ciência empírica – vou falar sobre a definição de conceitos, ou seja, a linguagem. Somos seres de linguagem e usamos ela para efetivar práticas pessoais ou sociais, portanto, a linguagem não é inócua e muito menos quando está apoiada em estratos de poder social do tamanho da psiquiatria biológica.
Para o maior divulgador deste movimento da antipsiquiatria nos últimos tempos, Thomas Szasz, em seu livro O Mito da Doença Mental, o conceito de doença é especificamente direcionado e em referência direta às condições físicas/biológicas/anatômicas do ser humano. E somente através de exames objetivos, pela visão, tato (do médico) ou por instrumentos tecnológicos que observam a doença no corpo de forma objetiva é que se pode definir algo como doença ou doente. Portanto, para algo ser considerado na linguagem como doença, deve existir objetivamente e ser acessado objetivamente de forma direta ou através de instrumentos que localizem a doença que existe e é real, porque visível manipulada, observável em um ou mais exames biológicos.
Então, o que torna um tratamento a ser um tratamento “médico” requer um sentido objetivo entre a linguagem e o objeto a ser chamado de doença e que se manifesta objetivamente em um órgão (ou vários) também de forma objetiva. Objetiva aqui no sentido de que este algo existe independente da opinião dos médicos ou de um “consenso” entre eles, ou seja, independentemente dos sujeitos e suas subjetividades. O “consenso” pode se dar (ou não) para escolher o melhor tratamento, mas não para estipular a realidade ou não da doença.
A psiquiatra não nasceu biológica, embora tenha nascido do controle e “cuidado” de pessoas excluídas socialmente, tanto os mendigos, os abandonados, os velhos, os deficientes físicos e os “loucos da cabeça”. Mas eram todos considerados iguais, no “mesmo saco” e colcoados no mesmo lugar, os asilos. É somente nas décadas de 20 a 50 do século XX, segundo alguns estudiosos da história da psiquiatra, que ela torna-se “biológica”. Kirk em seu livro Mad Science escreve, “Segundo Strassman (1995), a psiquiatria biológica moderna começou em 1943, quando Albert Hoffman descobriu a dietilamida do ácido lisérgico alucinógeno (LSD). O ano de 1949 também foi proposto, quando o psiquiatra John Cade publicou pela primeira vez seu relato sobre a administração de sais de lítio aos internos de seu hospital psiquiátrico na Austrália. Quase todo mundo, no entanto, escolheu 1952 como o início da revolução, quando as primeiras observações foram divulgadas na França de que uma droga chamada clorpromazina poderia subjugar internos agitados em manicômios”. Vale prestar atenção que todos esses “medicamentos” são psicoativos e não atingem uma doença específica no corpo humano. Falarei disso em outro texto.
A partir daí a psiquiatria vislumbra uma ótima oportunidade de ter um grande reconhecimento social em sua aceitação de prática médica. No mesmo livro Kirk, escreve “De acordo com o falecido psiquiatra francês Edouard Zarifian, “Não existe remédio sem receita. Para ser médica, a psiquiatria precisava de drogas (1995, p. 74)””.
Mas para medicar alguém, se não há uma prova objetiva por qualquer exame laboratorial ou outro que indique precisamente onde está a “doença”, é preciso pensar em que padrões pode se estabelecer o “normal”. O normal e as normas em medicina são estipulados em contato direto com o órgão a ser tratado. E o conhecimento objetivo da doença a ter atingido este órgão. Mesmo na medicina, até hoje se discute o conceito de doença, saúde ou normal e a definição mais aceita é que não exista algo chamado “normalidade absoluta”, somente uma “normalidade relativa”. Por isso escreve Leonidas Hegenberg em seu livro Doença: um estudo filosófico, “Nesse quadro de referência, normal é a pessoa que se submete à pressão das normas, que procede como se espera e cujas ações não conflitam com os ditames das normas. Já a palavra ‘anormal’ parece inadequada nesse quadro. De fato, quem foge às normas, quem se recusa a proceder de acordo com os costumes, não é exatamente ‘anormal’ – é uma pessoa diferente, excêntrica. Talvez coubesse usar ‘anômalo’ – que significa, precisamente, ‘aquilo que foge à norma’. (A valoração que parece presente em ‘anormal’ deixa de atuar quando se usa ‘anômalo’)”.
Não tendo como estabelecer uma normalidade absoluta, como diferenciar quem está doente para justificar um ato psiquiátrico? Pois o conceito de doença justifica o ato médico, mesmo que a psiquiatra não seja médica, mas é o que ela pretende ser. A doença, na medicina, está na esfera anatômica onde há lesão ou disfunção visíveis ou medíveis objetivamente. E com faz a psiquiatria biológica?
“Examina” comportamentos. E faz desses comportamentos “sintomas”. Sintomas de quê? De uma disfunção cerebral através de um desequilíbrio químico no cérebro. E qual exame objetivo que mostra isso com toda a clareza e determinação? Nenhum. Como então definir doença mental? Não através de exames clínicos ou laboratoriais, somente através de um jogo de linguagem. É por isso que uma das formas das quais se combate a psiquiatria biológica é escrutinando a linguagem que eles usam para justificar suas práticas. A expressão fundamental que usam e que dá subsídio à bíblia deles, o DSM, é doença mental.
A questão não é saber se “doença mental” ou “desequilíbrio químico no cérebro” fazem sentido para os psiquiatras biológicos, mas se fazem sentido no geral, enquanto expressão que tenha alguma referência objetiva no real.
É sobre ela que começarei a escrever uma série de textos aqui no blog (também segue no canal do YouTube da Epoché uma série chamada Antipsiquiatria em https://www.youtube.com/channel/UCgfjeX35uqEr4gZZ6MdIqww).