Por Fernando Fontoura
(Os argumentos deste texto tirei do livro Fundamentos Filosóficos da Neurociência de M. R. Bennett e P. M. Hacker)
Dentre os avanços da medicina que “apoiam” a psiquiatria biológica, está a neurociência. Os psiquiatras biológicos usam de argumentos – não de provas objetivas – sobre as “causas” das “doenças” ou “transtornos” mentais advindas das tecnologias que a neurociência usa para estudar o cérebro.
Realmente, é tarefa da neurociência cognitiva explicar as condições neurais que tornam possíveis as funções perceptivas, cognitivas, cogitativas, afetivas e volitivas do ser humano. Mas isso nem de perto nem de longe é explicar as causas dessas funções. O que pode fazer a neurociência é mostrar as causas de um cérebro lesado não efetivar essas funções. Mas nada acrescenta sobre as causas dessas funções em um cérebro saudável, isto é, não lesionado.
E é aí que entra a psiquiatria biológica em “parceria” com a neurociência. A psiquiatria biológica, não podendo ter exames objetivos médicos para justificar a “doença mental”, somente pressuposições teóricas jamais provadas até hoje, quer se aproveitar da estima social que tem a neurociência hoje em dia para “emprestar” dela algum verniz de cientificidade que dê apoio à sua falácia epistemológica da “doença mental” com causas biológicas, essencialmente, um desequilíbrio químico no cérebro.
Só que a união de dois erros não dá um acerto. A psiquiatria biológica usa da metáfora da “doença mental” com causas biológicas para “justificar” seu verniz médico. E a neurociência faz uso da falácia mereológica para justificar suas pesquisas sobre o comportamento humano. Ambas as abordagens são reducionistas e cometem erros epistemológicos grosseiros percebidos quando analisadas mais de perto.
A falácia mereológica é atribuir a uma ou algumas partes atributos ou predicados que só tem sentido ao todo. Vem do grego meros, que quer dizer parte. No caso da neurociência, é atribuir a uma parte do ser humano, seu cérebro, atributos que só têm sentido quando atribuídos ao todo psicofísico do ser humano.
A falácia mereológica da neurociência hoje é um resquício do filósofo René Descartes que distinguiu a mente do cérebro e imputou atributos psicológicos à mente. Hoje, os neurocientistas dividiram o cérebro do corpo (o que não parece exatamente uma divisão, como fez Descartes, mas o é, e assim é tratado pela neurociência) e imputam atributos psicológicos ao cérebro. Descartes imputou atributos psicológicos à mente, os neurocientistas imputam ao cérebro. Descartes declarou o dualismo mente cérebro, os neurocientistas, o dualismo cérebro corpo.
É como se o cérebro tivesse uma vasta gama de capacidades: o cérebro acredita, faz a melhor interpretação, combina informações, decide qual é a interpretação mais plausível, edifica uma interpretação multinível, faz conjecturas.
No entanto, percepcionar, pensar, raciocinar, sentir emoções, desejar, fazer planos e tomar decisões não são atributos da mente ou do cérebro, mas do ser humano como um todo, e não de uma parte sua. É o animal que percepciona, não partes do seu cérebro, e são seres humanos que pensam e raciocinam e não seus cérebros. O cérebro e suas atividades tornam possível para nós – e não para ele, o cérebro – percepcionar e pensar, sentir emoções e formar e realizar projetos.
Ou, o que é ainda mais fantástico quando atribuem aos neurônios conhecimento, calcular probabilidades, apresentar argumentos, construir hipóteses. Na psicologia também o cérebro faz uma descrição simbólica do mundo exterior, projeta símbolos, nos dá conhecimentos.
Para os cientistas cognitivos o cérebro vê, classifica, compara, toma decisões.
Diz Bennett e Hacker no livro que
“Reconhecemos quando uma pessoa põe uma pergunta e quando outra pessoa lhe responde. Mas o que será para o cérebro pôr uma pergunta ou responder a uma? É o ser humano que pergunta e o ser humano que responde. Será uma “grande” descoberta saber que o cérebro está envolvido nessas atividades humanas? Ou será uma “inovação” linguística? Ou será uma confusão conceitual?” (p. 86)
Os autores deste livro afirmam a última. Assim como Edmund Husserl que já advertia para a confusão de categorias que são heterogêneas em uma pretensa homogeneidade conceitual e linguística.
Não se pode investigar experimentalmente se um cérebro pensa, acredita, conjectura, raciocina, forma hipóteses etc., pois somente de um ser humano vivo (ou de algo que se assemelha a ele) pode-se dizer que tem sensações, vê, é cego, ouve, é surdo, é consciente ou inconsciente.
O cérebro nem vê, nem é cego – tal como paus e pedras não estão acordados mas também não estão adormecidos. O cérebro não ouve, mas não é surdo, assim com as árvores. Só o que pode ver é que pode ser cego. O cérebro não é um sujeito adequado para predicados psicológicos. A não ser por metáfora.
Portanto, as expressões, o cérebro acredita, aprende, pensa etc., é falsa, pois não tem sentido. Parecem dizer algo, mas não dizem nada. Pois não é o olho, nem o cérebro, que vê, mas nós vemos com nossos olhos, e não vemos com nossos cérebros.
Imputar estados mentais ou psicológicos ao cérebro faz tanto sentido quanto imputar aos rins. Não é o cérebro ou parte dele, muito menos os neurônios que está em um estado de agitação, mas o ser humano. É a pessoa que está em um estado mental de concentração, excitação, ansiedade e não seus cérebros ou suas partes. Assim como não é o cérebro que está casado ou divorciado, endividado ou falido.
O que a neurociência e suas tecnologias podem fazer é correlacionar o que uma pessoa pensa disto ou daquilo com a atividade localizada no cérebro detectada pela PET ou fMRI. Mas isto não mostra que o cérebro está pensando, refletindo ou meditando; mostra que esta ou aquela parte do córtex dessa pessoa está ativa quando a pessoa está pensando, refletindo ou meditando.
Os seres humanos e não seus cérebros pensam; os animais e não seus cérebros, quanto mais os hemisférios dos seus cérebros, ouvem, cheiram e saboreiam coisas; as pessoas e não seus cérebros tomam decisões ou são indecisas.
Portanto, a união da falácia epistemológica da “doença mental” da psiquiatria biológica mais a falácia mereológica da neurociência não é uma avanço científico, mas uma confusão ainda maior de conceitos, categorias, linguagem mal empregada a serviço não do ser humano e de melhorar sua experiência existencial, mas a serviço de manter uma reserva de mercado onde somente a psiquiatria tem o poder de receitar psicoativos que, fora do âmbito da assinatura de um psiquiatra biológico, é considerada uma droga proibida e malévola. Mas vinda de uma receita psiquiátrica é um “tratamento”. Para manter essa divisão forjada – drogas “lícitas” quando advêm de um psiquiatra e “ilícita” quando não advém dele – pelo poder social e jurídico que a psiquiatria biológica detém hoje em dia, é que ela luta para manter sua falácia da “doença mental” com causas biológicas, nomeadamente no cérebro. Pois eles sozinhos fornecem acesso a medicamentos psicoativos lícitos.
A “parceria” com a neurociência serve para ter justificativas “científicas” para manter esse mercado nas mãos dos psiquiatras biológicos.