Por Hélio Strassburger
Em Filosofia Clínica a expressão autogenia tem – ao menos – dois significados: um para descrever a qualidade da interseção entre os tópicos da estrutura de pensamento, outro sobre os movimentos de ressignificação existencial, em razão dos eventos da vida ou desdobramentos de uma terapia.
É no encontro de ficção e realidade, um desses endereços onde se pode cogitar sobre a relação de autogenia e literatura. A partir da convivência com uma obra literária, é possível localizar o mapa de um refúgio subjetivo. Suas páginas contêm vestígios de algo mais diante do olhar. Descreve e revela uma aptidão para ser outros – sem deixar de ser o mesmo – acrescentando-se. Um livro extraordinário reivindica um leitor extraordinário para sua compreensão.
Fernando Pessoas esclarece: “(…) Toda obra fala por si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem que se forma na mente: quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que ele não fala. (Alguma Prosa, 1990).
As mensagens dispostas num manuscrito brotam de um contexto peculiar. Com isso um discurso existencial se atualiza por suas escolhas de convívio e vocabulário. A literatura pode oferecer, a leitores desavisados, uma noção enganosa de seus textos. Pode ser necessário um tempo (subjetivo), para regressar as páginas descartadas e acessar as mensagens, até então, refugiadas numa literalidade incompreendida.
Uma estética se realiza, nessa relação entre um livro e sua leitura. Ao leitor, quando de suas visitas ao universo compartilhado pelo autor, trata de ser protagonista numa história que lhe representa. A vertigem precursora oferecida pela linguagem diante de si, concede, num instante único e repleto de significados, um ângulo de visão aos novos horizontes.
Fernando Pessoas diz assim: “(…) ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em que fala. (…)”. (Alguma Prosa, 1990).
A noção de um padrão transformador também se esboça, na vida de uma pessoa, ao preferir algumas companhias em detrimento de outras. Assim compartilha uma atualização da sua singularidade em processo. Quando se pensa no papel existencial do escritor, é comum se notar uma infidelidade aos propósitos iniciais da obra, quiçá para dar conta dos inesperados eventos que integram seu texto.
Nesse sentido, os deuses da escritura costumam ser cúmplices no desenvolvimento do espírito. Os achados nas mais diversas fontes de inspiração e estilos literários, costumam adicionar ingredientes à vida de cada um. A paixão dominante de ler e escrever alimenta o fogo dos dias, aquece o frio das alturas, desaloja refúgios subjetivos. As dialéticas desse encontro desconstroem a figura do escritor e do leitor exilados na solidão de suas páginas.
Referência:
PESSOA, Fernando. Alguma Prosa. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro/RJ. 1990. Págs. 65 e 74.
(Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/09/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed02-primavera-2022.html )