COMPORTAMENTO “CIENTÍFICO”?

Por Fernando Fontoura

Hoje vivemos uma praga: a do cientificismo no comportamento humano. As palavras mágicas são “a ciência comprova que…”. Assisti uma psicóloga comportamental falando sobre o caráter, a personalidade. Ela estava indo bem, citou Aristóteles, as virtudes, a diferença entre ato e potência das excelências humanas. Mas aí veio a frase, “Hoje a ciência comprova que temos algumas virtudes ou traços de caráter que estão em ato, mas que há outras que precisam ser desenvolvidas”. Mas em que a ciência pode ajudar a explicar ou ampliar esse fato – pois isso é um fato – que com os olhos da cara já compreendemos e enxergamos? Isto é óbvio! É só prestar um pouco de atenção e vemos que todos nós temos algumas características de nossa personalidade que estão em ato e outras que têm que ser desenvolvidas. Mas então para que essa retórica da “ciência”? Em que essa frase feita e vazia de sentido pode ajudar?


Pode dar um estatuto de verdade ou de conhecimento para uma frase que não tem esse estatuto. Depois ou antes dessa frase retórica, podemos colocar o que quisermos: “Os marcianos são azuis, pois hoje a ciência comprova que…”; “Hoje a ciência comprova que a crença em algum Deus faz parte da natureza humana”, e assim por diante.
Veja bem, não estou criticando a ciência enquanto ramo do saber, mas aqueles que usam de seu estatuto de verdade ou conhecimento para dar credibilidade “científica” ao que não tem e nem pode ter.

Mas desde quando que a ciência e o pensamento científico das ciências naturais (relação de causa e efeito, determinações futuras a partir de dados do presente ou do passado etc.) podem “explicar” ou “ampliar” o conhecimento do comportamento humano. Bem, podemos colocar um evento histórico, não uma data específica. Seria a partir de quando os asilos daqueles que tinham comportamentos sociais desviantes eram encarcerados para o “tratamento moral” (talvez meados de 1700 ou um pouco antes). “Tratamento moral” era esse o nome mesmo, inclusive com trabalhos de “pesquisa” sobre a “correção” moral desses loucos da cabeça, pirados, lunáticos. E quem “cuidava” desse tratamento moral nesses asilos? Médicos. Não eram “psiquiatras” propriamente ditos, mas ali já começava a ser ter uma visão científica do comportamento humano. Depois em Freud a linguagem científica do comportamento humano ganhou traços robustos. O futuro do comportamento e do caráter ou de traços de personalidade do adulto está determinando pelas suas relações na infância. As conexões necessárias entre o inconsciente, as pulsões e toda parafernália de linguagem psicanalítica dão um verniz forte de cientificidade na linguagem freudiana. Nos dias de hoje as psicologias tenderam a se aproximar dessa linguagem médica-científica e usam dessa retórica de que “a ciência comprova que…” para assuntos nada científicos.


Mas então, qual seria a fonte epistemológica do comportamento humano? Onde poderíamos buscar as informações sobre as relações humanas, tanto consigo mesma quanto com outros?
Hélio Strassburger, terapeuta filósofo clínico a quase trinta anos, responsável pela formação de muitos profissionais terapeutas hoje em dia (eu sou um deles) responde isso. É só lerem qualquer livro dele. Aqui uma pequena lista de suas fontes de investigação sobre o fenômeno humano: Merleau-Ponty, Albert Camus, Martin Heidegger, Umberto Eco, Harold Bloom, Clarice Lispector, Virginia Wolf, Oscar Wilde, Ernst Cassirer, Jorge Luis Borges. Ou seja, filósofos, antropólogos, ensaístas, poetas, escritores, artistas. Esses autores e tantos outros dessas áreas percebem e escrevem o comportamento humano não de formas reducionistas, mas na visão da amplitude, da multiplicidade, da complexidade.

Ao lermos esses autores temos a noção diametralmente oposta da cientificidade do comportamento humano, pois eles não nos dão respostas, definições dogmáticas, fórmulas, mas apresentam o humano com ele é em suas perspectivas, perspectivas de quem vive o humano em sua rede complexa de emoções, pensamentos, significados, sentidos, pré-juízos, valores, intencionalidades…


A filosofia clínica ao estar frente um ser humano não o mira como se estivesse em um microscópio em um laboratório nem através de planilhas ou fórmulas, nem faz ou traz teorias fundamentadas em linguagem científica, mas abre-se para o novo, para o inédito, para o não-escrito e não formulado. E é só assim que se pode perceber o fenômeno da singularidade.

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Publicado por epochefilosofiaclnica

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