Por Fernando Fontoura
Platão estava certo, pois há dois mundos diferentes e (às vezes) complementares: o mundo sensorial ou empírico e o mundo abstrato ou das ideias.
Na Filosofia Clínica há o tópico 3 da tabela da estrutura de pensamento que é o sensorial/abstrato. Neste tópico identificamos o horizonte predominante de onde vem os outros tópicos da estrutura de pensamento do partilhante. Ele pode narrar suas representações de mundo, sua experiência tanto mais por vias sensoriais como abstratas.
Um exemplo de sensorial é quando a pessoa narra sua experiência por palavras que levam em direção aos cinco sentidos, “Nesta semana arrumei todo meu jardim e isso fez um bem enorme para mim. Fiquei mais relaxada e mais feliz comigo mesma. Mas andando no bairro vi algumas pessoas morando na rua, as calçadas cheias de lixo e mal cheirosas e fiquei mais preocupada com esse mundo, para onde ele está indo. Sentei no parque, em um banco perto do lago, e deixei o sol e o vento tocarem em minha pele e logo pensei que a vida é isso aí mesmo, um amontoado de sensações que ora nos deixam mais felizes e ora nos deixam mais tristes”. Esse é um exemplo de narrativa onde a pessoa traz outros tópicos da estrutura de pensamento – o que acha de si mesmo, como o mundo aprece, emoções, pré-juízos – através da linguagem que nos remete aos cinco sentidos. Amar pode ser o toque da pele na pele do outro, ou o caminhar juntos abraçados na areia de uma praia a noite ou saborear um bom vinho em uma noite gelada ao luar enrolados em uma manta.
Mas também a narrativa pode vir de um horizonte abstrato, “Olhando o pôr-do-sol me veio o pensamento de que o ano também está finalizando, de que meus projetos que realizei tiveram muito do que penso de mim mesmo, de minha ideia de como quero viver, de como quero que o mundo pareça pela ideia da liberdade, do respeito pelos outros. Essa noção de respeito a cada pessoa é uma prática que está cada vez menos em moda hoje, em função dessa ideia de individualismo exagerado de que tudo tem que estar centrado em nossos pensamentos e gostos”. Esse é um exemplo do campo da abstração, onde a pessoa, a partir de uma pôr-do-sol sensorial “pulou” para o abstrato e lá fez seus pensamentos liberarem alguns outros tópicos – o que acha de si mesmo, buscas, como o mundo parece, pré-juízos – e é a partir deste âmbito, o abstrato, que ela narra para si e para outros aquilo que está em sua estrutura de pensamento.
Não há um horizonte “certo” ou “errado”, apenas é importante compreendermos em qual desses a pessoa mais navega. E isso também pode variar rapidamente dependendo do lugar, das circunstâncias ou do papel existencial. Quando a pessoa faz um esporte, um jogo de basquete por exemplo, ele exige mais sensorialidade e ali, naquele momento, o tópico sensorial estará mais predominante. Se ela estiver no abstrato enquanto joga, poderá perder a jogada, o ponto. Mas essa mesma pessoa pode estar sentada lendo um romance ou escrevendo uma história. Embora haja o aspecto físico envolvido nessas duas coisas, sua atenção estará mais focada nos pensamentos, nas ideias, no abstrato e não nas coisas em volta dos cinco sentidos. Ela poderá estar absorta em seu mundo das ideias e não ouvir, ver ou perceber ais nada ao redor e se ficar toda hora dando atenção às coisas sensoriais poderá não conseguir efetivar o que estava fazendo.
O que algumas vezes aparece nas terapias é alguém que vive prioritariamente em um desses mundos, tendo que fazer uma ponte comunicativa com o outro mundo, aquele que não é o “seu” mundo prioritariamente. É um Einstein no mundo das ideias sedo pressionado a consertar um cano da pia da cozinha ou um trabalhador braçal tendo que interpretar as ideias de um filósofo qualquer. Às vezes, por questões de valores ou práticas do mundo, é exigido que essas pessoas naveguem mais em outro mundo que não é o “seu” e somente isso já pode ser uma quebra no paradigma do modo de ser dela. Por serem mundos diferentes, muitas vezes as formas, significados e linguagens deles também são muito diferentes.
O filme “O homem que viu o infinito” mostra um pouco disso. O gênio abstrato da matemática, o indiano Ramanujan, tinha todas as suas intuições matemáticas no mundo das ideias, mas foi confrontado a ter que prová-las no “papel”, escrevê-las para poder ser reconhecido. Somente essa diferença de formas de comunicação das verdades matemáticas já foi desestruturante para ele, embora ele tivesse que assim fazer para ser reconhecido como um gênio.
Sensorial e abstrato é um tópico da estrutura de pensamento que traz inúmeras complexidades e diferentes formas de narrativas singulares e um bom terapeuta poderá identificar em qual desses horizontes prioritariamente navega o intelecto ou a malha intelectiva de seu partilhante.