Por Fernando Fontoura
A abordagem fisicalista do ser humano perde de vista a relação da mente como causadora dos efeitos físicos. A abordagem mentalista perde de vista a relação do corpo como causador de emoções e pensamentos. Essa dualidade de elementos não é uma dualidade, mas uma relação de bidirecionamento, de implicação bidirecional.
Obviamente que alguns pensamentos e moções alteram o estado físico/biológico do indivíduo, mas também algumas questões físicas/biológicas afetam pensamentos e emoções. Neste último, por exemplo, o cansaço físico extenuado pode gerar irritabilidade e falta de paciência tanto quanto emoções negativas. No primeiro, interpretações do cotidiano podem alterar os pensamentos e sentimentos fazendo com que alguém tenha uma alteração no seu comportamento físico/biológico.
O reducionismo ontológico sobre a natureza física ou mental do indivíduo só prejudica a compreensão de sua totalidade ou integralidade. Aristóteles já afirmava que dizer que a alma se irrita não é uma boa frase, pois não é a alma ou o corpo que se irritam, mas o indivíduo como um conjunto. Sócrates também dizia que se alguém considerar que ele foi até à ágora em função ou pelas condições de seus músculos ou tendões, está certo, mas dizer que os músculos e tendões foram a causa de ele ir até lá, não. Pois a causa, dizia ele, eram suas motivações do pensamento ou emoções, como gostar de se reunir com os amigos ou a vontade de conversar com eles. Os músculos e tendões são as condições de ele ir até lá, mas não as causas.
A psiquiatria biológica utiliza em sua epistemologia ontológica o reducionismo físico e por si só já tem uma compreensão equivocada do ser humano. O idealismo psicológico – no sentido de psicológico enquanto alma ou mente – comete o mesmo erro epistemológico por estar baseado em uma ontologia também reducionista.
Joanna Moncrieff e sua equipe lançaram uma pesquisa que foi publicada em junho de 2022 colocando uma pá de cal sobre a especulação – e sempre não foi mais do que isso, uma especulação, jamais uma teoria e muito menos um conhecimento científico – sobre a relação da serotonina com a depressão. O artigo que mostra a pesquisa é The serotonin theory of depression: a systematic umbrela review of the evidence em https://www.nature.com/articles/s41380-022-01661-0 .
Ela começa afirmando “A hipótese da serotonina na depressão ainda é influente. Nosso objetivo foi sintetizar e avaliar as evidências sobre se a depressão está associada à concentração ou atividade reduzida de serotonina em uma revisão sistemática das principais áreas relevantes de pesquisa”. O que acontece com essa especulação psiquiátrica biológica é que a justificação para a prescrição, venda e uso dos antidepressivos é essa fabulação envolvendo a serotonina – e a fabulação se estende por todas as outras “doenças psiquiátricas” associadas a outros neurotransmissores. Essa crença já está disseminada e naturalizada no mundo da vida onde 80% do público não especializado acreditam que assim é.
O artigo segue o modelo científico de pesquisa e análise e é muito detalhado, inclusive em sua metodologia. E Joanna Moncrieff e sua equipe chegam à conclusão – que não é nova, pois outras pesquisas sérias durante esses 50 anos já mostraram a mesma coisa, mas esta é a mais atualizada – de que “Esta revisão sugere que o enorme esforço de pesquisa baseado na hipótese da serotonina não produziu evidências convincentes de uma base bioquímica para a depressão. Isso é consistente com a pesquisa em muitos outros marcadores biológicos. Sugerimos que é hora de reconhecer que a teoria da serotonina na depressão não é empiricamente fundamentada”. Ponto, nova linha! Ou seja, próximo assunto, pois este está encerrado! Ou deveria estar!
O reducionismo psicológico ou o idealismo dos pensamentos ou emoções também está enviesado e errado epistemologicamente, e também provoca perturbações e, por isso, produz maus resultados. Neste lado podemos colocar o coaching, a psicologia positiva e todas as formas de terapias que reduzem a vida integral – grosso modo, mundo exterior e mundo interior – como resultado somente das formas de pensamento. Isso é um erro epistemológico, por suportar uma falácia ontológica. Tem seus perigos de produzir uma massa de pessoas com sentimentos de fracasso e burnout, ou seja, “pessoas queimadas” em sua hiperprodutividade interna o que as faz ter uma péssima relação consigo mesmas e com o mundo exterior, como consequência.
Essas questões estão à margem da terapia da filosofia clínica. O único pressuposto fundamental dela é que toda experiência que o indivíduo tem, seja mental ou física, passa pelo pensamento. É um pressuposto da metodologia, mas não uma afirmação ontológica ou epistemológica. Sendo uma terapia estruturalista e seu eixo se chama estrutura de pensamento, é ali, nesta estrutura, toda possível reorganização ou reestruturação das questões terapêuticas. Ou essas questões começam na estrutura de pensamento, ou finalizam ali ou passam por ela.
Sendo assim, a integralidade do outro pode se dar tanto pelo pensamento ou mente, quanto pelos modos de ser no mundo, o método não priorizando nenhuma forma ou outra.
É fato que quando uma terapia, qualquer que seja, apela para a natureza do ser humano, ela é uma teoria a priori e já está direcionada para um viés. É exatamente isso que não quer a filosofia clínica. Ela é formal, sem conteúdo prévio, e por isso não tem teoria de nada. Sendo assim o único viés que ela tem é o do próprio indivíduo, ou seja, o da singularidade.