CORPORATIVISMO TERAPÊUTICO

Por Fernando Fontoura

Semana passada apareceu nas redes sociais o comunicado do conselho federal de psicologia combatendo a constelação familiar. Seu desagrado é que psicólogos não podem usar de recursos metodológicos fora da psicologia ou que não tenham sido aprovados ou reconhecidos pelo conselho. E alguns ou muitos psicólogos se bandearam para o uso de constelação familiar como alternativa metodológica de atendimento terapêutico.


O conselho de psicologia já entrou em combate com o coaching, com a medicina (pelo ato médico) e agora com a constelação familiar.


Dentre esses embates, dois argumentos são os que mais aparecem: 1) práticas não reconhecidas pelo conselho de psicologia, neste caso a constelação familiar e 2) práticas ou metodologias terapêuticas que não têm comprovação ou evidências científicas.
Sobre o primeiro, em uma decisão judicial (https://www.conjur.com.br/2012-jul-23/conselhos-profissionais-nao-podem-legislar-pesquisa-educacao ) o juiz foi contrário ao pedido do conselho de psicologia ao denunciar e cassar o registro de uma psicóloga que havia usado, segundo o conselho de psicologia, de práticas não reconhecidas pelo conselho. A advogada da terapeuta afirmou, “O conselho também ignorou o fato de inexistir uma lei que estabeleça um rol de técnicas reconhecidas”. Bem, esse é um problema interno do conselho em relação aos psicólogos e psicólogas que estão registrados.


Sobre a segunda questão é a que me interessa enquanto terapeuta do mundo das terapias. Se a psicologia acusa as outras metodologias ou técnicas terapêuticas de não serem científicas, isso quer dizer que eles se arrogam científicos. Mas por quê? O que os torna científicos? O que torna as outras metodologias não-científicas ou, como afirma um psicólogo do YouTube, Daniel Gontijo, pseudocientíficas? E por que a psicologia é uma ciência? Em que sentido isso pode ser considerado?
São muitas questões e não poderei tratar de todas aqui. Mas vou tentar resumir minhas premissas e meu argumento.


As teorias humanas que aderiram à medicina (ou à ciência, como o behaviorismo ou o mecanicismo de Descartes), tentaram objetivar algo que é subjetivo: o comportamento humano e seu fenômeno existencial (como suas causas também). Ao fazerem isso, erroneamente, tratam a subjetividade com parâmetros objetivos. E como a coisa subjetiva sempre escapa às determinações objetivas, mais ferramentas, pesquisas, modelos e tipos são usados para objetivar a subjetividade humana. O DSM é o cúmulo desse pensamento.
O que é objetivar algo? É tratar esse algo como determinado e, por isso, previsível. No dicionário de filosofia está assim, “Qualquer doutrina que admita a existência de objetos (significados, conceitos, verdades, valores, normas, etc.) válidos independentemente das crenças e das opiniões dos diferentes sujeitos”. Em princípio, algo bom e do qual se deve buscar. Mas nas ciências naturais. Não nas humanas. Esse objetivismo é uma forma de abordagem aos fenômenos da física, da biologia, da química, da astronomia, não dos fenômenos humanos individuais, sociais ou éticos.


Ao objetivar algo subjetivo, como o comportamento humano em sua forma mais ampla, também se acaba por “objetificar” o ser humano. E objetificar já não é algo tão bom. Objetificar é tratar algo com um objeto, no sentido de que este objeto é manipulável, condicionado às manipulações do sujeito, como um motor de carro ou qualquer outro objeto físico. E isso não é maneira de tratar o humano e as humanidades.


A psicologia quer ser científica neste sentido? Sim e não. Sim quando ela matematiza cada vez mais o comportamento humano e torna manifesto em estatísticas. As estatísticas e números não manifestam o real, mas modificam a epistemologia ao representarem o subjetivo em parâmetros objetivos. Usam da “razão matemática” para alterar a compreensão dos fenômenos e então sustentar certas perspectivas “objetivas” do humano. Ou seja, alteram completamente o viés de compreensão do humano e não, o “revelam”. Ao contrário, escondem.
A psicologia não quer ser científica quando trata o ser humano através não de diagnósticos diretos, como o DSM da psiquiatria, mas realizam “pareceres” sobre o paciente. No entanto, o objetificam de outra forma quando usa de conceitos psiquiátricos que se dizem objetivos e médicos, o que é uma falácia. Então, nesta perspectiva mais “humanista” da psicologia, ela acaba por também objetivar o humano e o trata através da perspectiva das ciências naturais, via conceitos psiquiátricos.


Portanto, mesmo que a psicologia tente se dizer científica e ao mesmo tempo subjetiva, está cada vez mais se bandeando para o lado “médico objetivo” da psiquiatria, portanto, objetificando o ser humano e seus comportamentos.


E por que a psicologia fala em evidência científica? Evidência é um critério de verdade, tem a característica de ser objetiva frente a um fato. Mas o que torna um estudo ou um indício uma evidência? Ou seja, uma verdade objetiva? Somente o conhecimento baseado em dedução. Na ciência dedutiva o particular deriva do universal. O universal é necessário, portanto a conclusão também é. Necessário é aquilo que não pode não ser ou não pode ser diferente do que é. Assim cria-se o determinismo comportamental ou a previsibilidade daquilo que é imprevisível ou afeito às contingências, que é a vida humana. Portanto, a psicologia (e nenhuma terapia sobre o humano) não é uma ciência dedutiva e então não pode se arrogar necessidades comportamentais ou previsões objetivas sobre o ser humano.


Se a psicologia for ciência ela é no máximo uma ciência indutiva. Na ciência indutiva vai-se do particular ao universal. Lida com fatos contingentes. Não tem valor demonstrativo (apodítico), ou seja, que não se pode refutar, discutir, colocar em causa. Portanto, não trabalha com evidências, mas com indícios. Trabalha com regularidades a partir da observação dos fenômenos a posteriori, por isso é refutável e aberta a revisões. Não tem, assim, nenhuma relação com a verdade ou o conhecimento no sentido universal, mas somente com a verdade e o conhecimento particular, ou seja, limitado a certas regularidades ou critérios.


Se a psicologia é uma ciência indutiva, por que as outras também não podem ser? Toda indução é limitada e refutável, por que então a briga da psicologia com qualquer outra terapia ou metodologia que apareça? Porque ameaça seu corporativismo. Porque ameaça sua existência enquanto conselho político e de poder. Imagine se os psicólogos pudessem, sem qualquer controle político ou de polícia do conselho, usar de outras metodologias que não a própria psicologia ou as “reconhecidas pelo conselho” (que, vamos lembrar, não há essa lista)? A psicologia enquanto profissão controlada pelo conselho seria abalada e perderiam seus poderes políticos e financeiros.


Só para deixar registrado, antes que um dia a psicologia queria vir bater na filosofia clínica – se um dia a filosofia clínica crescer o bastante para incomodar a psicologia, o que penso que ainda está muito longe -, a filosofia clínica não é ciência, não trabalha com “evidências científicas” (seja o que for que a psicologia entenda por isso), na se arroga a um conhecimento universal ou total e objetivo sobre o fenômeno humano e não está interessada em corporativismo de polícia ou de poder sobre os terapeutas. A filosofia clínica nasceu libertária e emancipadora em todas as suas perspectivas, tanto do partilhante, ao ser compreendido em sua própria singularidade, quanto dos terapeutas ao estarem continuamente na contramão das terapias existentes e socialmente aceitas hoje em dia.


Caro conselho de psicologia, continue brigando com outras terapias e metodologias enquanto trabalhamos na margem desse horizonte e, a partir desse lugar, emancipamos e somos emancipados de todo esse imbróglio político.

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Publicado por epochefilosofiaclnica

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2 comentários em “CORPORATIVISMO TERAPÊUTICO

  1. Penso que as diversas terapias devem buscar fazer o que precisa ser feito: entender e ajudar os seus “pacientes”.
    É importante que cada uma saiba o seu lugar com sua metodologia diferente, sem se envolver nesse caos político , que possa afetar todo esse desenvolvimento terapêutico.

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