CRITÉRIOS

Por Fernando Fontoura

Advertência: este texto acompanha o vídeo do canal com o mesmo nome, Critérios. Digo isso porque este texto ficou grande e talvez ruim de ler pela internet. Seu conteúdo está quase igual neste vídeo https://youtu.be/r7a8HbneZzY

Pensei em fazer dividir tudo em 2 ou mais textos, mas perderia o nexo lógico ou teria que alterar muito cada parte. Escolhi colocá-lo na íntegra como foi feito.

A filosofia clínica tem sua estrutura de pensamento, submodos e os exames categoriais que são critérios epistemológicos para conhecer a singularidade de cada pessoa. Esses critérios irão aparecer de acordo com cada pessoa, isso quer dizer que não serão impostos de fora pelo filósofo clínico.

Quando reconhecemos esses critérios nas pessoas, eles aparecem para nós fenologicamente compondo sua estrutura interna, seus modos de ser, suas categorias. Agora, esses critérios que aparecem são a pessoa como um todo? Não. Esses critérios, se estão bem realizados no reconhecimento do terapeuta, são os verdadeiros critérios que aparecem por esta ou outra pessoa neste momento de sua vida, sobre aquele assunto que ela trouxe. Então, os critérios, por muitos que sejam, não configuram a totalidade daquela pessoa.

Mas há outros critérios também em outros assuntos da vida. Por exemplo. Os critérios fundamentais da física. As constantes físicas são critérios estabelecidos como a verdade científica sobre as cosias pesquisadas. Mas não foram as pessoas, no caso os cientistas, que estabeleceram esses critérios e por isso fazem com que a física caiba dentro de sua linguagem e seus interesses de pesquisa? Não, não é assim que funciona a ciência. Esses critérios analisados experimentalmente e matematicamente foram convertidos em critérios fundamentais porque muitos cientistas em vários momentos históricos, vários lugares, mesmo os que estavam tentando refutar esses critérios, acabaram por afirmá-los. Muito tempo e muita pesquisa e muito experimento é necessário para que haja um consenso científico sobre algo.

Então, a física, em suas constantes fundamentais, como a velocidade da luz, está muito perto da verdade da realidade. Esses critérios são a base da explicação da realidade que estão pesquisando. Então, nas ciências naturais, a verdade sobre o mundo existe. Mas não é uma prerrogativa dos cientistas. Nunca uma verdade é posse de alguma pessoa ou grupo. Quem possui a verdade é a realidade. As pessoas reconhecem a verdade através de estudos, de práticas, experiências teóricas ou práticas, por variadas metodologias, em muitos lugares diferentes e em momentos históricos também diferentes. Até agora, as constantes fundamentais reconhecidas por Einstein ainda valem. Então, a verdade não é uma posse ou propriedade de alguma pessoa ou grupo, mas sim uma propriedade da realidade.

Mas em filosofia clínica não somos ciências naturais, então os critérios que usamos para compreender o outro em sua singularidade não abarca a totalidade da pessoa. Assim é, penso eu, são todos os critérios que tentam abarcar o fenômeno humano. Por exemplo, existem pessoas que se relacionam com outras pessoas, inclusive a categoria emoções, na amizade ou amor, por exemplo, através de critérios. Enquanto os critérios estão sendo preenchidos pela outra pessoa, a amizade ou o amor podem existir. Mas quando os critérios deixam de ser preenchidos a amizade ou o amor podem desparecer. Assim, no estalar dos dedos. A pergunta é: essa pessoa que lida com outras através de critérios, tem amizade ou amor pela outra pessoa ou a seus próprios critérios? Penso eu que como a filosofia clínica não abarca o fenômeno humano em sua totalidade e, por isso, também em sua “verdade” – pois dá para concordar com Hegel que a verdade está no todo -, qualquer relacionamento humano por critérios não abarca o outro. Nem em sua totalidade nem em sua “verdade”.

Ainda mais se os critérios são muito específicos. Na filosofia clínica os critérios são formais, amplos, sem conteúdo prévio, assim temos mais chances de compreender o máximo possível daquele que aparece, embora não tenhamos uma visada totalizante. Mas quando nos relacionamos com outras pessoas em relacionamentos afetivos de amizade ou amor, por exemplo, através de critérios, deixamos de poder conhecer realmente quem é a outra pessoa. Porque as outras pessoas são sempre mais do que os critérios subjetivos de alguma outra pessoa em perspectiva do outro.

Os critérios filosóficos, por exemplo, os ontológicos, também são critérios amplos para abarcar a máxima possibilidade de seres e explicar maximamente o real. Então, os critérios ontológicos e filosóficos tentam abarcar o máximo do real porque seus critérios são amplos e universais. Os critérios sobre a realidade podem ser assim. Mas os critérios para relacionamentos entre pessoas são sempre uma forma de velar o outro. Não se abarca a totalidade das pessoas por critérios que queiramos colocar para nos relacionar com elas.

Os critérios em filosofia clínica são formais, no sentido de serem vazios, sem conteúdo prévio. Qual conteúdo? Qualquer um: de valor, de norma, de certo ou errado. Por exemplo, há uma categoria em filosofia clínica, ou um critério ou, como chamamos, um tópico, que se chama pré-juízos ou verdades subjetivas que as pessoas carregam consigo para lidar com as coisas. São verdades subjetivas prévias de antecipação da experiência, por isso pré. Em filosofia clínica, para sabermos se os pré-juízos das pessoas são “bons” ou “maus”, “certos” ou “errados”, temos que compreender como essa pessoa maneja seus pré-juízos em sua vida e quais são os efeitos disso para a pessoa. Assim, aparecerá pela própria pessoa se os pré-juízos dela são bons ou maus para ela nas circunstâncias de sua própria vida. Aliás, podem ser bons em uma situação e não ser assim em outra situação. Mas para sabermos disso temos que escutar e compreender a pessoa em seus próprios critérios.

Mas se tivermos um conteúdo prévio sobre os pré-juízos, por exemplo, se tivéssemos um valor prévio sobre eles em filosofia clínica, se tivéssemos um conteúdo de valor, de certo ou errado anterior à pessoa, quando ela falasse sobre eles já teríamos uma avaliação deles sem necessitar compreender ou escutar mais a pessoa, porque agora compararíamos ela ou seus pré-juízos com um padrão de valor externo já preestabelecido a ela mesma.

Por isso, quando nos relacionamos com outras pessoas no nosso dia-a-dia através de nossos critérios, isso quer dizer que já temos valores, normas internas das quais avaliaremos as pessoas antecipadamente. No momento em que pessoa preenche esse critério, não precisamos mais saber das outras coisas. No momento em que a pessoa não mais preenche esses critérios estabelecidos previamente por nós, também não precisamos mais saber de outras coisas. Assim, decidimos nossas ações em relação ao outro em função desses critérios.

Precisamos de critérios de valores para viver. Necessitamos para decidir, para compreender as coisas das quais não temos muita experiência ou vivência, para antecipar e poupar tempo e muito mais. Inclusive para relacionamentos “técnicos”, sejam profissionais ou de alguma necessidade ou conveniência importante. Porém, para relacionamentos com pessoas das quais temos ou queremos uma amizade ou amor mais amplo, deveríamos passar além dos critérios iniciais se realmente queremos conhecer e manter nosso relacionamento. Para saber quem é verdadeiramente o outro, temos que compreendê-lo além de nossos critérios subjetivos. [o partilhante que dizia que cada pessoa tinha 30 segundos para que ele aceitasse seu tempo].

Aristóteles já dizia isso quando falava sobre a amizade ou philia. Há várias formas de interação entre as pessoas. Uma das philias é a conveniência. Então, existem critérios antecipatórios para que essa relação se estabeleça e também para que se rompa. Uma vez não mais preenchido os critérios de conveniência, essa relação perde o sentido de ser. Essa seria uma forma, digamos, “menor” de relacionamento entre pessoas. Outra forma de estabelecer a philia é a necessidade. Enquanto se tem a necessidade e o outro cumpre o preenchimento desta necessidade, a relação se mantém. Mas quando a necessidade está satisfeita, a relação se desfaz. Essas relações anteriores são, antecipadamente, já marcadas com data de validade. Duram o tempo em que os critérios estão sendo preenchidos.

Mas seguindo Aristóteles, como ter uma verdadeira philia, seja na amizade ou no amor, através de critérios? Pois ele acreditava na “verdadeira” philia e, para isso, estabelecida critérios. E seus critérios eram as virtudes. Mas além de Aristóteles, não seria o amor ou a amizade uma relação de apesar de e não de por causa de? Isto é, ter ou manter uma philia apesar de o outro não preencher meus critérios prévios? Obviamente que temos que ter critérios para estabelecer os limites do aceitável. Mas se os limites são muito estreitos, o espaço de “fora” dos limites é muito fácil de alcançar.

Mas qual é a postura da pessoa para poder ter e manter uma philia deste tipo com outra pessoa? Essa é outra questão, mas penso que de forma rápida e geral podemos tirar essa reposta de Hans-Georg Gadamer em sua dialética hermenêutica ou diálogo hermenêutico onde ele estabelece alguns passos e um deles é a fusão de horizontes. Neste diálogo hermenêutico, nesta fusão de horizontes, o critério fundamental de todo esse movimento dialógico é a abertura de um para o outro. Essa abertura é além da compreensão do outro a partir dos próprios critérios dele, é se deixar ser tocado pelo outro, deixar que o outro se mostre e nos influencie também a partir dele mesmo, ou seja, além ou apesar de nossos próprios critérios pessoais sobre ele. Somente assim, penso eu, que podemos falar de uma amizade ou amor ou philia nos termos de Aristóteles ou, pelo menos, além da conveniência ou necessidade.

E quais são as funções ou a função dos critérios? Criar expectativa. Estão ali para que esperemos que as coisas se comportem de acordo com esses critérios. Por exemplo, na ciência, o telescópio que está viajando no universo, James Webb, mandou imagens e informações do universo que contradizem as explicações que hoje temos sobre a formação de galáxias. Os critérios dos quais as explicações científicas estão fundamentadas sobre a formação de galáxias não se adequam com o que o telescópio James Webb está mostrando na realidade.

A expectativa, por causa dos critérios, era que o telescópio fornecesse uma confirmação das teorias que hoje temos sobre a formação das galáxias. Mas se há uma contradição entra esses critérios e as teorias dos quais eles fundamentam a realidade, que fazem os cientistas fazem? Dizem que a realidade deve se adequar aos seus critérios e teorias? Não, mas vão revisar seus critérios e teorias. O que se coloca à prova é sua explicação sobre o real e não o real que deve ser revisado.

Mas quando os critérios são estabelecidos nas relações humanas, as pessoas esperam que através deles os outros reajam em conformidade com eles. Pouquíssimas revisões de seus próprios critérios as pessoas fazem quando as outras pessoas não se comportam ou se adequam aos seus critérios valorativos ou de juízos de valor. Isso é uma constante nas terapias, pelo menos das que tenho atendido. Por isso que pessoas que amam outras através de e somente pelos critérios que estabeleceram, amam seus critérios. Pode ser que Zygmunt Bauman e Richard Sennett diriam que essa é uma das bases do relacionamento liquido ou descartável.

Na filosofia clínica os critérios e categorias devem se conformar ao que o outro narra, diz sobre si mesmo. Se os critérios da filosofia clínica não se adequam ao outro, é a filosofia clínica, no caso o terapeuta, que deve revisar seus critérios de percepção do outro. Neste caso, exatamente com a ciência o faz. Hélio Strassburger tem uma metáfora muito boa para isso. Diz que o terapeuta deve sempre ter o antivírus ligado em sua atuação terapêutica. Isso quer dizer que temos sempre que estar atentos à nossa forma de perceber como estamos percebendo o outro.

Neste sentido, a filosofia clínica tem em comum com a ciência que a realidade do outro tem sempre preferência como padrão de revisão do próprio método. Porém, sua diferença para os critérios tanto da ciência quanto do uso “pessoal” para relacionamentos, é que não há expectativa nenhuma da qual as pessoas ou o universo deveriam ou teriam que cumprir, preencher ou se comportar de acordo com algum ou outro critério. Por não ter expectativas, a filosofia clínica não julga, não valora antecipadamente nada, mas tenta compreender o outro a partir dele mesmo.

Neste sentido, é bom lembrar que a postura terapêutica da filosofia clínica é única e exclusiva para essa interação. Neste momento terapêutico é importante essa postura, mas isso não quer dizer que fora da interação terapêutica, fora do papel existencial de terapeuta, nós, terapeutas, não tenhamos critérios para viver no mundo da vida. Mas, se deixarmos a metodologia da filosofia clínica adentrar vagarosamente ao nosso ser, podemos carregar dela para nossa vivência nos outros relacionamentos uma tolerância ou compreensão um pouco mais ampla dos relacionamentos com os outros.

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Publicado por epochefilosofiaclnica

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