Por Fernando Fontoura
Essa é uma questão interessante. Porque na verdade, se abrirmos os olhos da cara perceberemos hospitais psiquiátricos construídos por aí, psiquiatras de jaleco branco perambulando por suas alas e celas (“celas” aqui não é uma metáfora. Assim como estes hospitais também têm “pátio” e “banho de sol”, exatamente na mesma linguagem das penitenciárias. E isso não é uma coincidência!), vemos drogas psiquiátricas vendidas nas farmácias e percebemos a atuação psiquiátrica sócio-política-jurídica em ação. E o que vemos, vemos! Não há dúvida!
Porém, um dos exercícios do pensamento crítico é revelar as motivações, intenções ou razões que os olhos da cara não veem. E também analisar pormenorizadamente as justificativas que dão para essas intenções, motivos e razões. Essa análise pode ser conceitual, linguística, moral, antropológica (entre outras, menos médica ou biológica). Esse movimento de análise podemos chamar de “heurística”, a técnica de investigação por detrás do que aparece, do que sustenta o que aparece. E é aí, nesta área, que o fedor do esgoto aparece. E seja qual for a área de estudos – filosofia, sociologia, antropologia etc. – uma vez sentido esse cheiro e vendo de onde ele vem, faz parte da ética da comunicação e da responsabilidade epistêmica de quem pesquisa, anunciar ou denunciar os dejetos que estão escondidos das coisas que os olhos da cara vê.
Então, mesmo que a construção arquitetônica “hospital psiquiátrico” exista e toda a parafernália e economia da loucura ou da doença ou desequilíbrio ou transtorno mental tenha ações e efeitos no mundo, isso não quer dizer que doença mental exista. A Disney movimenta milhões ou bilhões de dólares, as pessoas vão em direção aos seus parques e compram, se vestem, choram, riem, se espantam e toda uma economia do entretenimento se põe em prática por anos e anos – e sem data de final para isso, ao contrário, ainda cresce -, mas sabemos que Mickey Mouse, Pateta, Pato Donald e a Sininho não existem. Mas isso não impede que toda uma economia de práticas, ideias, conceitos, emoções e desejos funcione e tenha efeitos nas pessoas e no mundo.
O fato de pensar que ter hospital psiquiátrico e por isso há, então, doença mental, é um tipo de pensamento que chamo de “lógica do alvo”. Mais de um comentário de mais de uma pessoa nos meus vídeos sobre antipsiquiatria me perguntam ou me afirmam essa questão, defendendo que até a psiquiatria biológica pode ser abusiva, mas que há doença mental, pois existem hospitais psiquiátricos e estes tem pessoas lá dentro.
A “lógica do alvo” é um tipo de raciocínio onde primeiro se atira a flecha e depois se desenha o alvo ao redor, assim garante-se que nunca se erra. O fato de ter um livro atestando como se identifica as bruxas (O Martelo das Bruxas ou o Malleus Maleficarum, para mim um dos dois piores livros de toda a humanidade, sendo o DSM da psiquiatria o outro), e de que neste livro se mostra como se faz “tecnicamente” para expulsar o demônio de dentro das mulheres e de existir um tribunal de Inquisição para julgar essas questões, não quer dizer que demônios existam nem que há algo chamado possessão demoníaca. Eles fizeram o processo reverso, primeiro inventaram a “doença”, ou seja, atiraram a flecha, e depois, através de livros e técnicas inventados por eles, afirmam a existência dos demônios, ou seja, desenharam o alvo. O mesmo acontece com a psiquiatria biológica!
No livro O Sacerdócio Psiquiátrico, o autor Daniel Figueira escreve, “No período de perseguição às bruxas, a crença sustentada pela Igreja era a de que havia feitiçaria (o que justificava práticas opressivas impostas às pessoas de conduta divergente) e que, logo havia feiticeiras. Porém, como não havia fatos que corroborassem esta crença, tão logo se fabricavam feiticeiras a partir dos chamados procedimentos inquisitoriais de tal modo que o fato de uma mulher flagelada pela ‘Santa’ Inquisição e pela ‘Justiça’ Eclesiástica se tornasse prova factual de seu ‘crime’, isto é, a feitiçaria”.
A diferença fundamental de domínios aqui é entre fato e crença. Como diz Daniel Figueira, a morte é um fato, a vida após a morte, uma crença. Primeiro estabelece-se uma crença, a de que existe “doença mental”, portanto “doentes mentais”. Como se justifica essa crença? Pela ação dos psiquiatras ao diagnosticarem a “doença mental”. É uma lógica de círculo vicioso. E círculo vicioso é uma falácia lógica que se refere a “um erro de raciocínio na demonstração de uma proposição como sendo verdadeira por ser dependente da demonstração da verdade de uma segunda proposição que apenas pode ser realizada com base na verdade da mesma primeira proposição” (vale a leitura do livro Lógica Elementar de Desidério Murcho). É o mesmo erro que acontece com o conceito de saúde como saúde = ausência de doença(s). Sem definir doença não há como definir saúde.
Portanto, mesmo que os olhos vejam o que aparece, é importante ter um pensamento heurístico crítico para compreender aquilo que não está explícito, mas que existe como sustentação do que aparece. E isso deve ser feito em todas as nossas áreas da vida, infelizmente. Infelizmente porque assim nos coloca em uma constante postura de escaneamento de tudo o que nos chega, ainda mais se for de instituições de poder social tão grande como a indústria farmacêutica, os psiquiatras biológicos, os médicos como classe social, os bancos e a indústria no geral. Ou você realmente acredita que todas essas instituições estão voltadas em sua economia interna e externa para nosso bem individual e para a nossa felicidade na terra? Se for assim que pensa, ligue agora o “antivírus” cognitivo antes que mais “malwares” e outro vírus contaminem seus pensamentos e capacidades de re-ler o real.
Doença mental enquanto uma condição médico-biológica não existe. A não ser que a pessoa tenha efetivamente uma lesão cerebral que a impede, por causa desta lesão, de ter as condições básicas orgânicas de ter controle ou consciência de alguns de seus comportamentos, pensamentos ou emoções. Mas aí já não é mais doença “mental”, mas doença física, objetiva que tem como efeitos a alteração do comportamento da pessoa. Qualquer tipo de “desajuste” mental sem uma lesão objetiva diagnosticada, e quando digo objetiva, digo clinicamente provada, por exames ou técnicas médicas-científicas claras e objetivas, é uma metáfora de mau gosto. Com não há nenhuma prova objetivo-médica-científica para qualquer parte do DSM da psiquiatria, tudo o que se passa neste livro desumano e horroroso é “crença” ou “suposição”, jamais uma “verdade” científica ou médica.
Tudo o que aparece exteriormente para nós na economia da doença mental – hospitais psiquiátricos, drogas psiquiátricas, psiquiatras biológicos de jaleco branco etc. – são resultado da crença social-jurídico-política de um poder combinado para acreditarmos que Mickey Mouse e sua turma existem de fato.
Os comportamentos das pessoas existem, suas dores existem, seu sofrimento é real, sua desestruturação ou desorganização mental é fato, mas nenhuma das explicações ou causas dadas pela psiquiatria biológica são verdadeiras ou fatos objetivos. Portanto, suas soluções são todas duvidosas e merecem críticas e desvelamento. Toda ação da psiquiatria biológica deve ser escrutinada a partir da ética e não da perspectiva médica.