COMPORTAMENTO “CIENTÍFICO”?

Por Fernando Fontoura

Hoje vivemos uma praga: a do cientificismo no comportamento humano. As palavras mágicas são “a ciência comprova que…”. Assisti uma psicóloga comportamental falando sobre o caráter, a personalidade. Ela estava indo bem, citou Aristóteles, as virtudes, a diferença entre ato e potência das excelências humanas. Mas aí veio a frase, “Hoje a ciência comprova que temos algumas virtudes ou traços de caráter que estão em ato, mas que há outras que precisam ser desenvolvidas”. Mas em que a ciência pode ajudar a explicar ou ampliar esse fato – pois isso é um fato – que com os olhos da cara já compreendemos e enxergamos? Isto é óbvio! É só prestar um pouco de atenção e vemos que todos nós temos algumas características de nossa personalidade que estão em ato e outras que têm que ser desenvolvidas. Mas então para que essa retórica da “ciência”? Em que essa frase feita e vazia de sentido pode ajudar?


Pode dar um estatuto de verdade ou de conhecimento para uma frase que não tem esse estatuto. Depois ou antes dessa frase retórica, podemos colocar o que quisermos: “Os marcianos são azuis, pois hoje a ciência comprova que…”; “Hoje a ciência comprova que a crença em algum Deus faz parte da natureza humana”, e assim por diante.
Veja bem, não estou criticando a ciência enquanto ramo do saber, mas aqueles que usam de seu estatuto de verdade ou conhecimento para dar credibilidade “científica” ao que não tem e nem pode ter.

Mas desde quando que a ciência e o pensamento científico das ciências naturais (relação de causa e efeito, determinações futuras a partir de dados do presente ou do passado etc.) podem “explicar” ou “ampliar” o conhecimento do comportamento humano. Bem, podemos colocar um evento histórico, não uma data específica. Seria a partir de quando os asilos daqueles que tinham comportamentos sociais desviantes eram encarcerados para o “tratamento moral” (talvez meados de 1700 ou um pouco antes). “Tratamento moral” era esse o nome mesmo, inclusive com trabalhos de “pesquisa” sobre a “correção” moral desses loucos da cabeça, pirados, lunáticos. E quem “cuidava” desse tratamento moral nesses asilos? Médicos. Não eram “psiquiatras” propriamente ditos, mas ali já começava a ser ter uma visão científica do comportamento humano. Depois em Freud a linguagem científica do comportamento humano ganhou traços robustos. O futuro do comportamento e do caráter ou de traços de personalidade do adulto está determinando pelas suas relações na infância. As conexões necessárias entre o inconsciente, as pulsões e toda parafernália de linguagem psicanalítica dão um verniz forte de cientificidade na linguagem freudiana. Nos dias de hoje as psicologias tenderam a se aproximar dessa linguagem médica-científica e usam dessa retórica de que “a ciência comprova que…” para assuntos nada científicos.


Mas então, qual seria a fonte epistemológica do comportamento humano? Onde poderíamos buscar as informações sobre as relações humanas, tanto consigo mesma quanto com outros?
Hélio Strassburger, terapeuta filósofo clínico a quase trinta anos, responsável pela formação de muitos profissionais terapeutas hoje em dia (eu sou um deles) responde isso. É só lerem qualquer livro dele. Aqui uma pequena lista de suas fontes de investigação sobre o fenômeno humano: Merleau-Ponty, Albert Camus, Martin Heidegger, Umberto Eco, Harold Bloom, Clarice Lispector, Virginia Wolf, Oscar Wilde, Ernst Cassirer, Jorge Luis Borges. Ou seja, filósofos, antropólogos, ensaístas, poetas, escritores, artistas. Esses autores e tantos outros dessas áreas percebem e escrevem o comportamento humano não de formas reducionistas, mas na visão da amplitude, da multiplicidade, da complexidade.

Ao lermos esses autores temos a noção diametralmente oposta da cientificidade do comportamento humano, pois eles não nos dão respostas, definições dogmáticas, fórmulas, mas apresentam o humano com ele é em suas perspectivas, perspectivas de quem vive o humano em sua rede complexa de emoções, pensamentos, significados, sentidos, pré-juízos, valores, intencionalidades…


A filosofia clínica ao estar frente um ser humano não o mira como se estivesse em um microscópio em um laboratório nem através de planilhas ou fórmulas, nem faz ou traz teorias fundamentadas em linguagem científica, mas abre-se para o novo, para o inédito, para o não-escrito e não formulado. E é só assim que se pode perceber o fenômeno da singularidade.

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O BEM-ESTAR DO PARTILHANTE

Por Fernando Fontoura

Pela experiência terapêutica, posso tentar fazer um reducionismo explicativo (mas não ontológico nem epistemológico, o que podem ser problemáticos) sobre a questão de que a filosofia clínica procura sempre o bem-estar subjetivo do partilhante. A resposta é sim e não. E isso não é uma contradição, mas um contraste de níveis. Como assim?


O acolhimento terapêutico na filosofia clínica é fundamental, pois fazemos a epoché, ou a suspensão de todos nossos juízos de valor, normativos, éticos, epistemológicos sobre o outro e seu mundo para tentarmos compreendê-lo a partir dele mesmo, de suas proporás linguagens, significados, sentidos. Este momento é do acolhimento e ali o partilhante vai nos mostrar sua questão, seu sofrimento, sua busca, seja o que for. Não cabe julgamentos de valor ou normativos aqui, portanto o filósofo clínico acolhe o outro como ele se mostra sem modificar em nada o que aparece, portanto, sem interpretações ou conselhos. Este é um nível.


O outro nível é quando começamos, junto como o partilhante, a nos movimentar em direção ao objetivo terapêutico que ele estabeleceu como prioridade. Temos, então, a questão inicial a qual acolhemos e o objetivo do qual ele quer chegar. Essa distância, essa diferença entre um e outro é a trajetória terapêutica. Nesta passagem é onde a reestruturação deve acontecer. No entanto, muitas vezes, para não dizer quase sempre, com sofrimento, com dor, com muito esforço, com altos e baixos. Penso muito este momento, esta trajetória, como um processo educativo qualquer, de aprendizado de qualquer coisa. O aprendizado ou o processo educativo não acontece sem esforço e, muitas vezes, sem sofrimento. Por quê? Porque é preciso quebrar modos de ser antigos, padrões de comportamento e/ou pensamento que estão estabelecidos há muito e que terão que ser alterados, modificados, ressignificados, reestruturados em sua totalidade ou em parte. E esse processo de quebrar padrões e estabelecer novos modos de ser, seja no mundo empírico seja no mundo do pensamento, é um processo difícil, que demanda muita energia, e que, muitas vezes, incomoda ou afronta também outros que estão de fora desse modo de ser, ou seja, as outras pessoas que interagem com ela. E também normalmente essas outras pessoas podem querer que as mudanças não ocorram na pessoa, por muitos motivos.


E aqui vai meu reducionismo explicativo sobre esse nível terapêutico, o da mudança de novos modos de ser: o processo terapêutico é a trajetória entre a questão inicial e o objetivo estabelecido pelo partilhante. Essa diferença é um processo de reestruturação de modos de ser, de rearranjar novos modos de ser no mundo e/ou de pensar, portanto é um processo de quebra de padrões autogênicos e reestabelecimento de novos. Isso é um processo que requer esforço, algum sofrimento ou resistência tanto da estrutura interna da pessoa quanto das relações que ela tem no mundo. O bem-estar do partilhante neste processo não é o mesmo do acolhimento inicial, mas de andar junto com o partilhante para enfrentar e passar por essas dificuldades. Na verdade, o bem-estar não está presente neste processo como prioridade, mas no conseguir chegar ao objetivo terapêutico proposto. É por isso que neste momento é que muitas pessoas abandonam a terapia, xingam ou culpam o terapeuta ou o mundo. É aqui também que muitas pessoas são internadas em hospitais psiquiátricos ou vão aos psiquiatras e são intoxicadas com os psicoativos.


É preciso muito cuidado na percepção da interseção terapêutica pelo filósofo clínico quando está neste processo com o partilhante. Cada um tem o seu tempo, sua estrutura, seus processos internos. Não tem uma receita ou manual de como lidar com esse processo de movimento terapêutico. O filósofo clínico terá que estar muito atento à interseção terapêutica e aos movimentos da estrutura interna de seu partilhante. Na filosofa clínica não se faz tentativa e erro, não se faz do partilhante um ratinho de laboratório para ver os resultados depois. Mas se age terapeuticamente com conhecimento dos tópicos da estrutura interna do outro e seus modos de ser, ou seja, os submodos.


Uma vez efetivada essa passagem, o bem-estar do partilhante tem novamente prioridade, pois a terapia tem que funcionar para fazer o partilhante alcançar seu objetivo terapêutico. Não tem sentido passar por essa fase difícil, sofrida e o partilhante ainda se sentir o mesmo com sua dor existencial. Então, uma vez passada essa fase, o bem-estar do partilhante novamente tem prioridade. Mas todo caminho terapêutico não é um “mar de rosas”, pois depois do acolhimento e de compreender o objetivo terapêutico do outro, há de se passar por uma fase de crescimento, de descobertas, de reestruturações que não é nada fácil e que o bem-estar subjetivo não é, naquele momento, o maior objetivo terapêutico. Obviamente que o terapeuta deve tentar sempre finalizar uma terapia da melhor maneira possível para o partilhante, pois ele vai sair dali e viver sua vida.


Muitas nuances poderão acontecer neste processo, por isso, como escrevi acima, isso é um reducionismo explicativo apenas para iniciar a abordar o assunto, mas de nenhuma forma essa explicação esgota as possibilidades.

A ESTRUTURA DE PENSAMENTO EXISTE?

Por Fernando Fontoura

Esta é uma pergunta que ocorre às vezes tanto no ambiente da formação, com alunos e alunas, quanto no ambiente dos próprios filósofos ou filósofas clínicas.
É uma pergunta que tem o viés ontológico, ou seja, do âmbito da explicação da existência ou da realidade em si.


Mas então, a estrutura de pensamento existe? Minha resposta é clara: não! A estrutura de pensamento é uma ferramenta epistemológica para a compreensão do real ou do fenômeno, no caso da filosofia clínica. É uma artimanha metodológica para acessarmos o fenômeno como ele se apresenta. Só existe o modelo epistemológico porque existe o fenômeno, o real.
Portanto, a estrutura de pensamento nem cria o real ou o fenômeno nem tem existência própria em si mesma. Isso quer dizer que há outras formas de modelos epistemológicos para acessar ou entrar em contato com o real, como por exemplo, o inconsciente, os arquétipos e outras categorias psis por aí.


A diferença é que a filosofia clínica (ou em mesmo!) tem a noção de que a estrutura de pensamento é apenas um modelo epistemológico de compreensão do fenômeno e não trata esse modelo como uma substância aristotélica que tem subsistência própria. Isso quer dizer que sabemos que o real e o fenômeno sempre têm primazia. Se algo não se adequar ao modelo, é o modelo que tem que se adequar e se refazer em relação ao real, e nunca o contrário. E é justamente isso que fazem as psis, adequam o fenômeno do outro em seu modelo e querem “corrigir” o outro a partir deste modelo, com se este fosse não a descrição do real ou do fenômeno, mas a verdadeira forma de perceber e lidar com o real. É o inverso disso que faz a filosofia clínica. Para nós, só o terapeuta pode errar. Se o modelo não se adequa ao real, quem errou foi o terapeuta ao perceber o fenômeno. Não podemos dizer, como as psis e o buscador do Google dizem, “você quis dizer…”. Não podemos “corrigir” o fenômeno, e é por isso que trabalhamos com a descrição ao invés da intepretação.


Mas voltando à questão do tema proposto aqui, a estrutura de pensamento é um modelo epistemológico de acesso e percepção do fenômeno como ele aparece e só tem sentido o modelo a partir do fenômeno. Obviamente que digo isso nas formações, “O tópico pré-juízo não deixou que o indivíduo efetivasse essa ação” ou “o tópico emoção ajudou ele a se expressar melhor”. São frases que dão existência e subsistência de substância a esses dois tópicos que mencionei. É como dizer que o inconsciente contra meus pensamentos ou emoções. No entanto, como falo para os alunos e alunas, sei que quando falo assim estou usando um recurso pedagógico metafórico, pois na realidade, não há nenhum tópico deixando ou permitindo ou controlando a mim mesmo ou a qualquer outro indivíduo.


Portanto, o que vem em primeiro lugar, sempre, é o indivíduo. Não a estrutura de pensamento ou qualquer outro modelo epistemológico existente em si mesmo, pois eles não existem por si. A estrutura de pensamento só tem sentido enquanto um modelo epistemológico a partir da existência objetiva de um indivíduo e dos fenômenos que ele narra. Fora isso ela é uma metáfora pedagógica e quem quiser “enquadrar” você uma dessas fantasias epistemológicas para a partir dessas fantasias “corrigir” o real, ou seja, você, agarre sua carteira e corra para a direção oposta.

O EIXO DE TODA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL

Por Fernando Fontoura

Como terapeuta já ouvi algumas vezes frases como essa, “Não mudou nada, mas mudou tudo”! Ou “Tudo está exatamente igual, mas ao mesmo tempo, está tudo diferente”! Também já ouvi o contrário, “Mudei tudo, mas tá tudo igual”!


Como posso compreender isso à luz da Filosofia Clínica?


Em primeiro lugar, vamos admitir de pronto que não há contradição nestas frases. Nos afastemos de Aristóteles e sua definição de contradição, pois não estamos neste nível de compreensão. Em filosofia clínica trabalhamos com a perspectiva de níveis. Essas frases acima mostram que há diferentes níveis na estrutura interna das pessoas. Como assim?


Bem, em segundo lugar, lembremos que a filosofia clínica tem três eixos principais, que são os exames categoriais, a estrutura de pensamento e os submodos. Esses três eixos se interrelacionam formando uma rede ou um sistema onde há várias faces ou perspectivas. Cada uma dessas faces ou perspectivas podemos considerar como um nível ao mesmo tempo diferenciado dos outros mas interrelacionados com eles. É um modelo de sistema complexo, como um tabuleiro de xadrez, onde cada peça tem suas regras de movimentação mas ao mesmo tempo estão todas interligadas com as possibilidades de movimentação tanta das minhas próprias peças quanto das do meu adversário. O xadrez é um exemplo de sistema complexo.


Muito bem! Então como podemos compreender as frases acima citadas? Partimos de um pré-juízo fundamental em filosofia clínica: a estrutura de pensamento é o eixo de toda experiência possível (frase de Mário Luís Pardal em seu livro Filosofia como Terapia). Ou seja, tudo passa ou começa ou termina na estrutura de pensamento. É neste horizonte que as alterações terapêuticas acontecem. É quando muda ou altera ou movimenta a estrutura interna de cada um que realmente há as alterações terapêuticas que poderão ser efetivadas em diferentes modos de ser.


Eu fiz um vídeo sobre este tema onde dou mais exemplos, e ele estará no ar no canal do YouTube da Epoché (https://www.youtube.com/channel/UCgfjeX35uqEr4gZZ6MdIqww ). Mas aqui, de forma mais resumida, posso salientar que uma pessoa pode estar efetivando seus modos de ser exatamente iguais como estavam sendo efetivados, pode estar trabalhando, cuidando dos filhos, saindo com amigos e mantendo toda a rotina ou práticas existenciais no mundo da vida como antes. Mas se algo alertou em sua estrutura de pensamento, mesmo que nada tenha mudado em suas práticas de vida ou modos de ser, “tudo” muda. Essa é a compreensão de frases como “Nada mudou, mas tudo está diferente” ou “nada mudou, mas tudo mudou”. Onde “nada” mudou? No nível dos modos de ser no mundo, nas práticas diárias ou rotineiras. Mas, por alguma razão, como por exemplo, um amor repentino, um insight interno, a estrutura interna fez uma revolução, uma alteração significativa e, a partir disso, “tudo” mudou. A vida se torna mais leve, mas clara, mas “colorida”, mas significativa etc. Mesmo que “nada” tenha mudado na rotina dos modos de ser, “tudo” mudou.


O contrário também acontece. Às vezes, por força da pressão da vida, das coisas “externas”, alguém tem que efetivar mudanças em seu modo de ser, em suas práticas do dia-a-dia e, quem vê essa pessoa de fora, pensa que ela “mudou” muito, que se “adaptou” às mudanças impostas pela vida. Porém, essa pessoa, internamente em sua estrutura, não realizou as alterações que acomodem essas mudanças práticas ou nos seus modos de ser. E ainda sofre, se angustia com “as mesmas coisas”, embora ela tenha mudado na prática. Mas se não mudou na estrutura interna, “nada” mudou. Algumas vezes só pessoas próximas dela é que saberão que ainda está sofrendo e que não alterou ainda suas emoções, perspectivas de mundo, o que acha de si mesma etc. Às vezes, somente seu terapeuta poderá saber disso. Pois ele tem a perspectiva de sua estrutura interna.


É por isso que em filosofia clínica a estrutura de pensamento é o eixo fundamental da terapêutica, pois é lá que, no final, acontecerá – ou não – as mudanças significativas que efetivarão novos modos de ser tanto externos quanto internos.

A Boa Loucura!

Por Fernando Fontoura

Em A Linguagem da Loucura, o antipsiquiatria e antipsicanalista David Cooper escreve o objetivo pelo qual escreve o livro,


“Pela redescoberta do orgasmo e da loucura (incluindo a “loucura” dos artistas) enquanto necessidades radicais para a transformação das pessoas.”


Portanto, a loucura da qual ele escreve é


“[…] a loucura que está mais ou menos presente em todos nós, e não aquela que pela diagnose recebeu o batismo psiquiátrico de “esquizofrenia” ou qualquer outro rótulo inventado pelos agentes psico-policiais especializados da fase final da sociedade capitalista.”


Para este autor,


“A loucura é um movimento para fora do familiarismo em direção à autonomia. É este o verdadeiro “perigo” da loucura e a razão da violenta repressão a que está sujeita.”


Outro autor, Erasmo de Roteradm escreveu o Elogio da Loucura. No papel existencial da própria loucura ele escreve o texto em primeira pessoa, a própria Loucura falando sobre si mesma.


“Embora os homens [seres humanos] costumem ferir a minha reputação e eu saiba muto bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais.”


Continua a própria Loucura,


“Nascida no meio de tantas delícias não saudei a luz com o pranto, como quase todos os homens [seres humanos]: mal fui parida, comecei a rir gostosamente na cara de minha mãe”.


Duas coisas chamam a atenção neste texto: 1. O título que dei a esse escrito e 2. O que falam da loucura estes dois autores.


A primeira, o título, já é uma ofensa à própria palavra loucura, pois tenho que qualificá-la como “boa” para doer tirar dela todo o mofo das qualificações não-boas que ela recebeu. Os gregos chamavam de mania ou moria, mas com isso queriam dizer desrrazão. A norma era a razão, a balança era o logos e a comparação era com os que não tinham a potencialidade da razão, os animais irracionais. Tudo de bom era racional e todo racional era bom (seguindo alguns critérios, dependendo de cada escola filosófica). Agir com a razão era seguir a natureza da qual nos foi dada enquanto seres que somos. Agir diferente disso era uma ofensas à própria natureza e a si mesmo enquanto ser de natureza racional. Mas era pedagógico o erro, poderia aprender e aperfeiçoar o uso da razão e tornar-se um não mania, um não-louco, um ser, então, sociável, capaz de aproveitar as boas racionalidade da vida e seus efeitos, como as boas paixões.


Mas de alguma forma, o “louco” estava fora, à margem e precisava ser “corrigido”. Então quando coloco “boa” como adjetivo da loucura estou querendo dizer que os gregos não estavam completamente certos, ou, pelo menos, enviesados pela seus pré-juízos de normalidade e correção enquanto aquilo que é “natural”. E loucura não é natural, portanto não pode ser bom (embora nem tudo o que seja natural é bom!).


Por isso preciso ainda hoje colocar o “boa” para qualificar a loucura como algo bom, pois ela carrega a marca do mal, do errado, do antinatural.


E no 2. O que falam da loucura estes dois autores, é, além da qualificação que dou no título, estabelecer que na verdade a loucura é “natural” e sempre foi boa. Que ela provoca rompimentos necessários, que leva a limites de alegrias e prazeres que jamais as “boas paixões” racionais levarão. Que o caminho da loucura, embora de rompimento com o natural, que é chorar quando se nasce, não é um descaminho, mas uma alternativa “normal” e mais “natural” do que aquilo estabelecido pelas “leis” naturais da razão e da convenção.


Não o rompimento comedido, que passa pela observação atenta de todos os pontos, de formar hipóteses racionais e equilibradas para cada ponto observado e que experimenta com calma e cuidado cada hipótese antes de tentar efetivar alguma.


Obviamente que só a filosofia clínica pode aceitar pessoas que rompem assim com os padrões, com as normas, com as “leis” naturais ou sociais e não considerá-las “loucas” más”, que necessitam estar fora de circulação e de uma “correção” moral, seja por uma instituição ou por algum psicotrópico aditivo que envenena e intoxica o cérebro, a mente e os pensamentos.
Este é um assunto fascinante que Hélio Strassburger, filósofo clínico e professor de cursos de formação em filosofia clínica pela Casa da Filosofia Clínica, já colocou em livros como Pérolas Imperfeitas: apontamentos sobre a lógica do improvável.


Muito mais poderia falar sobre isso aqui, mas vou fazer um vídeo para o canal onde posso ter mais espaço para um desenvolvimento mais amplo sobre o assunto.


Até lá, quem sabe, reconheça, descubra e entre em contato com sua loucura, aquela que nas escolas levam as crianças a serem diagnosticadas como TDAH. A anti-regra é o primeiro degrau da autonomia, da loucura de ser você mesmo contra todo o sistema de normatização e uniformização. Ah, as escolas, instituições caras à normatividade e uniformização de pensamentos e comportamentos. Quanto ainda precisam avançar para deixarem de serem carcereiros de jovens “desiquilibrados”!

TERAPIA FUNCIONA?

Por Fernando Fontoura

Uma das frases que ouço muito, ainda mais nas aulas de formação, é que “até é importante fazer terapia, mas ela não tem um resultado objetivo, muitas vezes não dá para saber se realmente “funciona””?
Então deixa eu afirmar uma coisa: terapia da filosofia clínica funciona! E qualquer terapia deveria “funcionar”.


Mas o que é “funcionar”? E quais os critérios para a terapia da filosofia clínica “funcionar”?


Primeiro, “funcionar” é atingir um objetivo pré-estabelecido. A filosofia clínica é uma técnica terapêutica, sem adição de conteúdos normativos ou de julgamentos de valor antecipados, portanto ela não é uma terapia moral, mas uma técnica vazia de conteúdo esperando este ser preenchido pelo partilhante. E o primeiro “conteúdo” que o partilhante “preenche” é o objetivo de sua caminhada terapêutica, seja qual for: casar, separar, busca de novo trabalho, quebrar padrões de modos de ser, criar novos modos de ser, tornar-se uma pessoa melhor para si, tornar-se uma pessoa melhor para os outros etc. Portanto, há uma “linha de chegada”, um objetivo claro (às vezes mais que um, às vezes vai se descortinando no caminhar terapêutico, mas aparecerá).

Então a terapia vai “funcionar” se o partilhante se sentir satisfeito na busca de atingir seu objetivo terapêutico, estabelecido por ele mesmo. O nível do “funcionar” vai depender de cada partilhante em relação ao seu objetivo. Às vezes é necessário chegar ao desfecho completo, às vezes parte do desfecho já está bom e ele sai da terapia para completar sua jornada com “autonomia”, experienciando sua aventura existencial. E depois volta, se for o caso, para a partilha. Há vários níveis de “funcionar”, mas a terapia da filosofia clínica se compromete a chegar lá junto com o partilhante, seja onde for. Ele tem que ter ou sentir o benefício de sua dedicação de horas e dinheiro investido com o terapeuta e esse benefício vem com a consecução de seu (ou seus) objetivo (ou objetivos). Não interessa o tempo que isso levar, mas, por minha experiência, se o terapeuta estiver com a escuta “afinada”, a compreensão do ou dos objetivos do partilhante e o caminho a ser percorrido acabam por serem mais rápidos do que muitos “coachings”. Isso porque a perspectiva ampla de horizonte existencial que a filosofia clínica utiliza em sua metodologia descortina caminhos, descaminhos, vales e precipícios de uma forma clara (fenomenológica).

O terapeuta da filosofia clínica tem a seu dispor todo um “ferramental” de submodos para compreender e fazer a construção compartilhada com seu partilhante. É preciso estudar, estar atento na escuta e manter-se na metodologia. Aí entra o outro aspecto do que estou falando aqui, ou seja, quais são os critérios para a terapia da filosofia clínica funcionar.


Em primeiro lugar, fazer uma boa formação. O que é uma “boa” formação? Aquela que se mantem dentro do horizonte da própria filosofia clínica, sem buscar “penduricalhos” metodológicos ou epistemológicos para ela. Tudo o que o terapeuta precisa para praticar a filosofia clínica está em sua própria metodologia, qual seja, exames categoriais, tópicos da estrutura de pensamento e submodos. São apenas três eixos, mas que abrangem uma combinação quase infinita de possibilidades de ser terapeuta e de acolher a singularidade.


Em segundo lugar, e, para mim, a parte fundamental, é realizar uma boa supervisão de estágio. O que é “boa” aqui? É ser avaliativa dentro dos parâmetros da própria metodologia. Parece que há uma confusão entre o acolhimento da formação e a supervisão de estágio. Como professor da formação, tenho a postura terapêutica neste espaço de aprendizagem, pois ali, apesar de não ser uma relação terapêutica em si, é necessário um certo eixo terapêutico dos professores, pois é uma formação de desenvolvimento pessoal, e não de culinária ou mecânica. A formação mexe já diretamente em níveis do próprio ser dos alunos, em diferentes níveis e intensidades. Então, há a possibilidade de haver mudanças pessoais nos modos de ser ou pensar dos alunos durante a formação, e o professor, que para a Epoché deve ser terapeuta atuante, deve estar atento a isso e acolher esses movimentos dos alunos. É, portanto, um ambiente tanto epistemológico – de aprendizado – quanto um ambiente terapêutico mitigado.


A diferença é que a supervisão tem um objetivo avaliativo, pois dali vai sair (ou não) uma pessoa apta a cuidar das questões existenciais de muitos outros seres humanos. O objetivo maior da supervisão é manter a mensagem libertária e emancipadora da filosofia clínica a partir daquele postulante a terapeuta. Não é dar um “certificado” ou “fabricar” terapeutas à revelia da metodologia nem à parte dela. A Epoché quer terapeutas da filosofia clínica que levem a mensagem originária da terapia, que é, como escrevi acima, libertária e emancipadora, e não qualquer outra mensagem. E neste espectro, há uma avaliação diretiva sobre o exercício terapêutico do supervisionado. Não somente para manter a mensagem da filosofia clínica, mas para o próprio postulante a terapeuta poder exercer sua atividade com bases sólidas às quais não irão tremer ou ruir por qualquer “abalo” no decorrer da experiência terapêutica.


O tempo mínimo de estágio é de seis meses, mas pode ser que não pare por aí, se a avaliação do supervisor compreender que o ser terapeuta do supervisionado não está pronto. Quando vejo pessoas formadas e já atuantes em filosofia clínica com fragilidades na expressividade do método ou com relatos de atendimentos voltados para outras metodologias ou teorias que não a filosofia clínica, vejo ali a fragilidade da supervisão.


Sempre há acolhimento em filosofia clínica, em todas as fases de interação com ela, mas a supervisão é um ambiente de avaliação, onde faz parte do acolhimento ser honesto sobre o aperfeiçoamento ou não do ser terapeuta do estagiário. Se você pensa somente em “ganhar” um certificado de terapeuta ou de “formalizar” um caminho epistemológico que iniciou na formação, não venha fazer estágio com a Epoché. Estamos interessados em pessoas, não em “formalizações” vazias.


Nunca podemos garantir o sucesso do terapeuta formado por nós, pois os caminhos existenciais circunstanciados pela historicidade de cada um é sempre uma porta entreaberta para vários caminhos, mas para o início desta caminhada garantimos que funciona, pois quem se forma pela Epoché sabe que passou pela prova de “fogo” daqueles professores que ajudam a robustecer o ser terapeuta de seus supervisionados.


Se você fizer terapia com um filósofo clínico que tenha tido uma boa supervisão (mesmo que a formação não tenha sido tão “boa”), ele provavelmente irá fazer uma partilha terapêutica que funciona, seja qual for o objetivo ou o caminho a percorrer.

FILOSOFIA CLÍNICA NAS EMPRESAS

Por Fernando Fontoura

Foi ao ar nesta semana, tanto no canal do YouTube [ https://youtu.be/DQZtnWjKDrQ ] quanto no Spotify [ https://open.spotify.com/show/2SaCUzeSneYZI4zcNiVgBD ] o tema Filosofia Clínicas nas Empresas. Vou aqui fazer um resumo dessa questão.

A empresa é, de certa forma, uma soma de partes interligadas, tanto de setores quanto, fundamentalmente, de pessoas. Esse conjunto está circunstanciado por um horizonte que é definido pelos valores, atuação e missão da empresa. Dentro deste horizonte, há formas de ser da empresa que atendem a esse horizonte e que, às vezes, confrontam ela com suas metas ou objetivos. Há, portanto, possiblidade de conflitos empresariais tanto quanto há conflitos em uma estrutura de pensamento de uma pessoa que é circunstanciada pela sua própria história.

Nesta perspectiva é que entra a Filosofia Clínica. Na atuação individual, com uma ou uma partilhante, a mesma “fotografia” é feita: elementos de uma estrutura (os setores da empresa e as pessoas em cada setor) que formam um conjunto interrelacionado em si mesmo e que estão circunstanciados e em relação com o horizonte existencial dessa pessoa, à qual efetiva alguns modos de ser para lidar com essa relação complexa. Às vezes tudo corre bem e a existência é boa, agradável e recompensadora. Outras vezes, é tudo ao contrário, quando as relações internas não se alinham ou se sintonizam bem com as circunstâncias ou os modos de ser.

Portanto, a perspectiva original da Filosofia Clínica, a noção de conjunto, tanto dos elementos da estrutura quanto de sua relação como as outras circunstâncias externas e os modos de ser, fazem dela uma ferramenta metodológica muito pertinente e de visão ampla para grupos, empresas, famílias etc.

A Filosofia Clínica nas empresas ou grupos ajuda a todos terem uma noção tanto de si quanto da estrutura complexa e ampla do grupo e assim compreender o todo a partir de si e compreender a si a partir do todo. Neste sentido, as relações, conexões ou interseções entre as estruturas ficam mais claras e pode-se ter melhores meios de decisão sobre si ou sobre a estrutura como um todo.

Importante considerar que a estruturar é móvel, tanto a interna de cada um quanto a grande estrutura na qual a empresa ou grupo está inserida e da qual é o horizonte de todos os que estão neste grupo. Ao perceber-se no todo, as possibilidades e limites ficam mais claros. Às vezes alguma reestruturação interna é o suficiente, outras uma reestruturação na rede empresarial e às vezes a noção de que não se está no momento certo e no lugar certo.

A Filosofia Clínica pode ajudar tanto a cada indivíduo dentro dessa rede empresarial quanto aos próprios gestores e tomadores de decisões dentro da empresa. Não determinando o que fazer, mas mostrando um mapa de caminhos abertos, atalhos e limites e a relação parte/todo e todo/parte para um melhor movimento de mudanças ou confirmações de padrões dentro do horizonte empresarial ou do grupo.

Pessoa Normal???

Por Fernando Fontoura

“Há, por exemplo, um bloco de metal no porão do Gabinete de Pesos e Medidas, fora de Paris, cercado por três redomas de vidro para protegê-lo de qualquer coisa que possa danificar sua superfície. Este é o quilograma padrão com o qual todos os outros quilogramas do mundo devem ser comparados. Mas, por favor, note: não há cérebro humano em qualquer cuba no Smithsonian ou no Instituto Nacional de Saúde Mental, ou em qualquer outro lugar, que represente o “cérebro normal” ao qual todos os outros cérebros devem ser comparados. E se não existe um cérebro padrão ou normal, então como podemos dizer quais cérebros em nosso mundo são normais e quais são anormais?” – Thomas Armstrong. The Myth of ADHD Child, p. 76.

Há na psiquiatria, de forma implícita, uma normatividade de como deve ser uma pessoa “normal” e qual tipo (ontologia existencial) ela deve seguir enquanto ser humano normal. Como seria o ser humano psiquiátrico? Quais são os critérios de ser que a psiquiatria biológica impõe enquanto norma?

Qualquer que seja essa normatividade, ela não é médica, é moral/social/política. Como qualquer teoria moral, o discurso da psiquiatria biológica é político/social e não médico. Através dos mandamentos bíblicos as religiões tentam impor ou convencer em suas catequeses como devem se comportar ou pensar seus fiéis. O mesmo discurso faz a psiquiatria biológica através de sua bíblia, o DSM!

A diferença é que um fiel de uma religião qualquer “escolhe” ir apra aquela religião, e a psiquiatria biológica nos impõe suas “verdades” moralizantes através de seus secretários psis, das instituições sociais como as escolas e juciário e por uma linguagem cheia de falácias lógicas e mitos.

É fora desses e de qualquer outro padrão que a Filosofia Clínica trabalha para revelar a Singularidade de cada um. Ser Singular é exatamente não poder ser “medido” por nenhum padrão fora de você mesmo, pois somente você pode julgar a si mesmo no tocante ao que você acha bom ou não tã bom em sua própria existência.

Conjecturas de autogenia literária

Por Hélio Strassburger

Em Filosofia Clínica a expressão autogenia tem – ao menos – dois significados: um para descrever a qualidade da interseção entre os tópicos da estrutura de pensamento, outro sobre os movimentos de ressignificação existencial, em razão dos eventos da vida ou desdobramentos de uma terapia.


É no encontro de ficção e realidade, um desses endereços onde se pode cogitar sobre a relação de autogenia e literatura. A partir da convivência com uma obra literária, é possível localizar o mapa de um refúgio subjetivo. Suas páginas contêm vestígios de algo mais diante do olhar. Descreve e revela uma aptidão para ser outros – sem deixar de ser o mesmo – acrescentando-se. Um livro extraordinário reivindica um leitor extraordinário para sua compreensão.
Fernando Pessoas esclarece: “(…) Toda obra fala por si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem que se forma na mente: quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que ele não fala. (Alguma Prosa, 1990).


As mensagens dispostas num manuscrito brotam de um contexto peculiar. Com isso um discurso existencial se atualiza por suas escolhas de convívio e vocabulário. A literatura pode oferecer, a leitores desavisados, uma noção enganosa de seus textos. Pode ser necessário um tempo (subjetivo), para regressar as páginas descartadas e acessar as mensagens, até então, refugiadas numa literalidade incompreendida.


Uma estética se realiza, nessa relação entre um livro e sua leitura. Ao leitor, quando de suas visitas ao universo compartilhado pelo autor, trata de ser protagonista numa história que lhe representa. A vertigem precursora oferecida pela linguagem diante de si, concede, num instante único e repleto de significados, um ângulo de visão aos novos horizontes.
Fernando Pessoas diz assim: “(…) ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em que fala. (…)”. (Alguma Prosa, 1990).


A noção de um padrão transformador também se esboça, na vida de uma pessoa, ao preferir algumas companhias em detrimento de outras. Assim compartilha uma atualização da sua singularidade em processo. Quando se pensa no papel existencial do escritor, é comum se notar uma infidelidade aos propósitos iniciais da obra, quiçá para dar conta dos inesperados eventos que integram seu texto.


Nesse sentido, os deuses da escritura costumam ser cúmplices no desenvolvimento do espírito. Os achados nas mais diversas fontes de inspiração e estilos literários, costumam adicionar ingredientes à vida de cada um. A paixão dominante de ler e escrever alimenta o fogo dos dias, aquece o frio das alturas, desaloja refúgios subjetivos. As dialéticas desse encontro desconstroem a figura do escritor e do leitor exilados na solidão de suas páginas.

Referência:
PESSOA, Fernando. Alguma Prosa. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro/RJ. 1990. Págs. 65 e 74.

(Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/09/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed02-primavera-2022.html )

Os sonhos na clínica

Por Miguel Angelo Caruzo

Os sonhos foram alvo de interpretações há milênios. Interesse mantido nas investigações contemporâneas a fim de auxiliar as pessoas nas terapias. Para a filosofia clínica, os sonhos não necessariamente se destacam. Entre outras manifestações possíveis da alma humana, eles podem ou não ter relevância.

Entre diversos modos do filósofo clínico lidar com os sonhos, aponto duas vias complementares. Primeiramente, ver como o próprio partilhante entende, interpreta ou lida com eles; qual a relevância, a necessidade ou o sentido de tais sonhos na vida de quem os experiencia. Em seguida, investigar por meio das bases metodológicas da clínica filosófica e realizar, no relato dos sonhos, o caminho de compreensão semelhante ao realizado na escuta da historicidade.

O filósofo clínico pede ao partilhante para relatar seus sonhos. Se há diálogos, interações, com outras pessoas, o terapeuta pode identificar elementos da categoria relação, interseções de estruturas de pensamento, recíproca de inversão etc. Se detalha o ambiente, a presença de deslocamento curto, sensorial, em direção às sensações, percepcionar, entre outros, podem aparecer. Caso haja elementos sem correspondência com objetos encontrados no cotidiano, o terapeuta pode identificar indícios de abstrato, de em direção às ideias complexas, ou até, em casos de interpretação desses elementos, de significado. Se o partilhante fala de si, do que sentiu, pensou, de como ficou, elementos como lugar, emoções e inversão podem ser elencados.

O filósofo clínico não interpreta. O partilhante é a fonte das informações, dos sentidos, dos direcionamentos, da identificação dos assuntos últimos etc. Se há algum sentido no sonho, alguma interpretação, quem o mostra é o partilhante. Tal como o relato da historicidade revela o partilhante, assim os sonhos também podem ajudar a compreendê-lo.

Os exames categoriais podem identificar o mundo “sonhado” do partilhante. A identificação da estrutura de pensamento pode apresentar os tópicos da pessoa tanto acordada quanto dormindo – em seus sonhos. O mesmo pode ocorrer em relação aos submodos. É possível encontrar tópicos aparecendo somente nos sonhos, outros apenas nos relatos da pessoa despertada, e vice e versa.

O filósofo clínico ouve o relato dos sonhos e busca compreendê-los; sem recorrer a recursos interpretativos a priori. As bases do método – exames categoriais, estrutura de pensamento e submodos – permanecem. Caso o partilhante interprete seus sonhos a partir de teóricos de outras abordagens terapêuticas ou quaisquer outras fontes, se isso fizer sentido para a ele, assim será trabalhado na clínica. Afinal, o partilhante é o critério de sua compreensão pelo filósofo clínico.

(Este texto foi originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/09/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed02-primavera-2022.html )