ANTIPSIQUIATRIA E O CONCEITO DE DOENÇA

Por Fernando Fontoura

A antipsiquiatria é um movimento social contra as práticas, as justificativas médicas/biológicas, a teoria do conhecimento sobre a natureza humana (seja biológica ou metafísica, sim a psiquiatria – e a psicanálise – tem teorias metafísicas ou ontológicas sobre a natureza humana) e todo o arsenal de tecnologias e conhecimentos que apoiam essa chamada biopsiquiatria ou psiquiatria biológica– neurociência, por exemplo, e fundamentalmente contra a bíblia deles, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou DSM, sigla em inglês).


Neste sentido sou um antipsiquiatra e minha narrativa – como a da antipsiquiatria como um todo – são contra o argumento de autoridade que é investido à psiquiatria no geral, essencialmente a biológica. Argumento de autoridade é um mito, pois somente pode-se estabelecer uma autoridade quando todos concordam com ela. Se há outra autoridade no mesmo assunto que discorde com a premiria, o argumento de autoridade se desfaz. E há centenas e centenas de autoridades fora da psiquiatria ou dentro dela – pois a antipsiquiatria nasceu de um movimento a partir de dentro da psiquiatria, ou seja, de psiquiatras contra a própria psiquiatria – que discordam de forma diametralmente oposta à psiquiatra biológica.


Embora tenha minha prática terapêutica com a Filosofia Clínica, meus argumentos contra a psiquiatria biológica veem da filosofia, à qual também tenho uma estrada de estudos e práticas.


Para começar – o que já é difícil de escolher, pois há tantas formas de argumento contra a psiquiatria biológica que podemos ter mais de um ponto de início, como a linguagem, a lógica, a ética social, a ontologia, a política social e relações de poder, a ciência empírica – vou falar sobre a definição de conceitos, ou seja, a linguagem. Somos seres de linguagem e usamos ela para efetivar práticas pessoais ou sociais, portanto, a linguagem não é inócua e muito menos quando está apoiada em estratos de poder social do tamanho da psiquiatria biológica.


Para o maior divulgador deste movimento da antipsiquiatria nos últimos tempos, Thomas Szasz, em seu livro O Mito da Doença Mental, o conceito de doença é especificamente direcionado e em referência direta às condições físicas/biológicas/anatômicas do ser humano. E somente através de exames objetivos, pela visão, tato (do médico) ou por instrumentos tecnológicos que observam a doença no corpo de forma objetiva é que se pode definir algo como doença ou doente. Portanto, para algo ser considerado na linguagem como doença, deve existir objetivamente e ser acessado objetivamente de forma direta ou através de instrumentos que localizem a doença que existe e é real, porque visível manipulada, observável em um ou mais exames biológicos.


Então, o que torna um tratamento a ser um tratamento “médico” requer um sentido objetivo entre a linguagem e o objeto a ser chamado de doença e que se manifesta objetivamente em um órgão (ou vários) também de forma objetiva. Objetiva aqui no sentido de que este algo existe independente da opinião dos médicos ou de um “consenso” entre eles, ou seja, independentemente dos sujeitos e suas subjetividades. O “consenso” pode se dar (ou não) para escolher o melhor tratamento, mas não para estipular a realidade ou não da doença.


A psiquiatra não nasceu biológica, embora tenha nascido do controle e “cuidado” de pessoas excluídas socialmente, tanto os mendigos, os abandonados, os velhos, os deficientes físicos e os “loucos da cabeça”. Mas eram todos considerados iguais, no “mesmo saco” e colcoados no mesmo lugar, os asilos. É somente nas décadas de 20 a 50 do século XX, segundo alguns estudiosos da história da psiquiatra, que ela torna-se “biológica”. Kirk em seu livro Mad Science escreve, “Segundo Strassman (1995), a psiquiatria biológica moderna começou em 1943, quando Albert Hoffman descobriu a dietilamida do ácido lisérgico alucinógeno (LSD). O ano de 1949 também foi proposto, quando o psiquiatra John Cade publicou pela primeira vez seu relato sobre a administração de sais de lítio aos internos de seu hospital psiquiátrico na Austrália. Quase todo mundo, no entanto, escolheu 1952 como o início da revolução, quando as primeiras observações foram divulgadas na França de que uma droga chamada clorpromazina poderia subjugar internos agitados em manicômios”. Vale prestar atenção que todos esses “medicamentos” são psicoativos e não atingem uma doença específica no corpo humano. Falarei disso em outro texto.


A partir daí a psiquiatria vislumbra uma ótima oportunidade de ter um grande reconhecimento social em sua aceitação de prática médica. No mesmo livro Kirk, escreve “De acordo com o falecido psiquiatra francês Edouard Zarifian, “Não existe remédio sem receita. Para ser médica, a psiquiatria precisava de drogas (1995, p. 74)””.


Mas para medicar alguém, se não há uma prova objetiva por qualquer exame laboratorial ou outro que indique precisamente onde está a “doença”, é preciso pensar em que padrões pode se estabelecer o “normal”. O normal e as normas em medicina são estipulados em contato direto com o órgão a ser tratado. E o conhecimento objetivo da doença a ter atingido este órgão. Mesmo na medicina, até hoje se discute o conceito de doença, saúde ou normal e a definição mais aceita é que não exista algo chamado “normalidade absoluta”, somente uma “normalidade relativa”. Por isso escreve Leonidas Hegenberg em seu livro Doença: um estudo filosófico, “Nesse quadro de referência, normal é a pessoa que se submete à pressão das normas, que procede como se espera e cujas ações não conflitam com os ditames das normas. Já a palavra ‘anormal’ parece inadequada nesse quadro. De fato, quem foge às normas, quem se recusa a proceder de acordo com os costumes, não é exatamente ‘anormal’ – é uma pessoa diferente, excêntrica. Talvez coubesse usar ‘anômalo’ – que significa, precisamente, ‘aquilo que foge à norma’. (A valoração que parece presente em ‘anormal’ deixa de atuar quando se usa ‘anômalo’)”.


Não tendo como estabelecer uma normalidade absoluta, como diferenciar quem está doente para justificar um ato psiquiátrico? Pois o conceito de doença justifica o ato médico, mesmo que a psiquiatra não seja médica, mas é o que ela pretende ser. A doença, na medicina, está na esfera anatômica onde há lesão ou disfunção visíveis ou medíveis objetivamente. E com faz a psiquiatria biológica?


“Examina” comportamentos. E faz desses comportamentos “sintomas”. Sintomas de quê? De uma disfunção cerebral através de um desequilíbrio químico no cérebro. E qual exame objetivo que mostra isso com toda a clareza e determinação? Nenhum. Como então definir doença mental? Não através de exames clínicos ou laboratoriais, somente através de um jogo de linguagem. É por isso que uma das formas das quais se combate a psiquiatria biológica é escrutinando a linguagem que eles usam para justificar suas práticas. A expressão fundamental que usam e que dá subsídio à bíblia deles, o DSM, é doença mental.
A questão não é saber se “doença mental” ou “desequilíbrio químico no cérebro” fazem sentido para os psiquiatras biológicos, mas se fazem sentido no geral, enquanto expressão que tenha alguma referência objetiva no real.


É sobre ela que começarei a escrever uma série de textos aqui no blog (também segue no canal do YouTube da Epoché uma série chamada Antipsiquiatria em https://www.youtube.com/channel/UCgfjeX35uqEr4gZZ6MdIqww).

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Prática em Filosofia Clínica

Por Fernando Fontoura

“Nesse sentido, a nova abordagem possui uma representação diferenciada do fenômeno humano; as pessoas passam a ter nome, sobrenome, uma história de vida singular, linguagem própria, expressividade peculiar, estabelecendo um abismo com as lógicas da tipologia, da classificação desumana dos manuais psiquiátricos, os quais, ao oferecer diagnósticos, prognósticos, curas, normalidades, destituem a pessoa de seu ser sujeito em ação.” – Hélio Strassburger em Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório. Ed. Sulina. Porto Alegre/2021.

Pode ser que muitos que não sejam terapeutas e leiam as linhas acima se perguntem, meio frustrados ou estupefatos pela afirmação feita, “Mas não é assim com qualquer terapia séria? Não é assim que todas fazem? Como poderia uma terapia ser diferente disso? Então, qual é a vantagem da filosofia clínica ao afirmar tudo isso?”

Vamos começar pelo maior contraste, já que, às vezes, o mais próximo é o mais difícil de enxergar as nuances. Hélio já coloca ali uma divisão diametralmente oposta entre a filosofia clínica e a psiquiatria que se diz médica, aquela que usa do manual diagnóstico e estatístico de doença mental (DSM) para rotular, tipologizar, classificar e estigmatizar as pessoas em nome de uma tal cura medicamentosa para uma certa doença mental biológica.

Vamos considerar que quando você vai a um médico-biológico (impressionante eu ter que escrever dessa forma!) e diz que está com uma dor aguda na parte debaixo da barriga, do lado direito, além das perguntas frequentes de alimentação, se houve acidente ou outra neste sentido, ele não pergunta sobre sua vida pessoal ou sobre como você tem se comportado no trabalho ou com sua esposa.

As perguntas são direcionadas ao objeto do reclame da dor e, logo em seguida, exames objetivos feitos por aparelhos que efetivamente medem, “veem”, pesam, o suposto órgão que está sendo exposto a dor. As doenças associadas ao órgão de então, se não estão fora do catálogo médico, existem, são reais, são visíveis tanto sua ação quanto o mal que fazem no tal órgão. Uma biópsia pode ser necessária, e tanto os aparelhos quanto o tecido ou parte do órgão são realmente acessados e o resultado vem em forma de objetividade.

Nada disso acontece na psiquiatria médica. O tal médico-psiquiatra não precisa (se não quiser) nem olhar para você, nem saber seu nome, nem onde mora, nem suas relações sociais e precisa somente que você relate seu comportamento e preencha alguns requisitos com nenhum valor objetivo médico, como o quesito “ele (ou você mesmo) fala em excesso?” Sendo excesso exatamente o quê?

Ao mesmo tempo que o psiquiatra biológico tem a “postura” de um médico que ouve a queixa e concentra-se na procura de causas objetivas, ele ouve a queixa e não tem nenhuma base objetiva da qual possa se apoiar. Mas não precisa, porque o DSM tem ali as “dicas” de como e onde “enquadrar” aquele comportamento em sintomas de uma mente doente, que sofre de um desequilíbrio químico em tal ou tal parte do sistema nervoso. Só que a questão que o paciente do psiquiatra biológico traz não é corporal, mas comportamental. Sendo assim, não devia, ao contrário de seu “guru” médico-biológico, saber mais e mais dos contextos sociais e de relacionamentos em que seu paciente se situa? Mais ainda se for uma criança? Não, é justamente o contrário o que acontece.

Mesmo o médico-biológico hoje em dia sabe que inclusive algumas (ou muitas) doenças orgânicas têm a ver com o relacionamento que o paciente tem com seu meio físico. Antropologistas já disseram isso há muito tempo. Como então, o psiquiatra biológico, pode ser menos contextualista-social do que um médico-biológico?

Pois para essa abordagem psiquiátrica o ser humano não precisa de nome, de sobrenome, de história pessoal, linguagem e expressividades próprias. Ele é apenas um corpo onde se comporta de forma anormal devido a um enguiço no seu sistema nervoso. Até meu mecânico quando levo o carro na oficina pergunta por quais estradas andei antes de avaliar meu carro e depois de ouvir o que tenho a reclamar de seu funcionamento.

Neste livro – Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório – de forma leve, com os requintes de um experiência “pura” em filosofia clínica, ou seja, Hélio nunca usou nenhum outro suporte metodológico além da própria filosofia clínica em toda sua frutífera carreira (que ainda continua de vento em popa!), ele mostra os resultados práticos do seu Ser Terapeuta onde atendeu em hospitais psiquiátricos, em grandes e pequenas comunidades do Brasil afora, em grandes e pequenas empresas, escolas e qualquer outro lugar que você possa, porventura, ter em mente. Ele é a prova da eficácia robusta de metodologia terapêutica da filosofia clínica que foi estruturada por Lúcio Packter no início dos anos 90. A mesma filosofia clínica de outrora, aplicada diligentemente, com cuidado, atenção e carinho tanto ao método quanto àquele que entra em contato com a filosofia clínica.

O SER TERAPEUTA E O ACOLHIMENTO FILOSÓFICO

Por Fernando Fontoura

O Ser Terapeuta em filosofia clínica está apoiado em três vertentes filosóficas, quais sejam, a fenomenologia, a hermenêutica da compreensão e a analítica da linguagem.

Estas linhas ou teorias filosóficas vemos com mais amplitude na formação em filosofia clínica, mas aqui posso dar um pequeno resumo da importância delas na formação do ser terapeuta.

A fenomenologia trabalha, entre outras coisas, com a epoché, que é a suspensão dos juízos do terapeuta. Quais juízos temos que suspender, deixar de lado? Todos! Qualquer um que tenhamos sobre valores, normas, certo/errado, bom/mau etc. É preciso que quando estivermos no eixo terapêutico coloquemos todos os nossos juízos e pensamentos sobre o mundo da vida de lado para dar espaço para os juízos e representações de mundo do partilhante. Para evitar contaminarmos sua narrativa e suas representações, exercitamos a epoché, ou a suspensão de nossos juízos.

A hermenêutica da compreensão entra na relação logo anterior ao diálogo e no início desse mesmo diálogo. Ela convida o terapeuta a escutar o que o partilhante narra, suas representações, de forma a compreendê-las e não explicá-las nem interpretá-las. Somente quando compreendemos o partilhante a partir dos critérios dele mesmo é que podemos compreendê-lo e, a partir daí, inicia um diálogo hermenêutico com ele, que em filosofia clínica chamamos de construção compartilhada.

Ao escutarmos o partilhante através de seus próprios critérios, acabamos por efetivar uma analítica da linguagem, que querer dizer que devemos compreender os jogos de linguagem que ele traz a partir das significações sentidos que ele mesmo usa em sua vida. Novamente, na analítica da linguagem, não interpretamos apenas analisamos os jogos de linguagem que o partilhante traz a partir de suas próprias significações e sentidos.

Portanto, o ser terapeuta da filosofia clínica efetiva na postura terapêutica essas três formas filosóficas de abordagem ao fenômeno humano que podemos traduzir por acolhimento. Praticas a fenomenologia, a hermenêutica da compreensão e a analítica da linguagem é acolher o outro em sua totalidade assim exatamente com ele se apresenta.

Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório (Resenha)

Por Fernando Fontoura

O livro Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório, de Hélio Strassburger, traz a perspectiva da prática da filosofia clínica. Ao mesmo tempo em que expõe a própria metodologia, mas uma metodologia originária, daquela filosofia clínica sistematizada nos meados de 1990, ele nos mostra através de sua experiência de quase trinta anos enquanto terapeuta, toda a beleza que essa terapia proporciona tanto para quem com entra em contato com ela quanto para o próprio terapeuta. Hélio sustenta e afirma no livro os pressupostos fundamentais dessa filosofia clínica, sua viga mestra, a singularidade, os meandros da linguagem literária ou quase poética, aquela dos interstícios, dos quase-conceitos, que aparecem nas dobras existenciais e nas mais variadas formas de expressividade que existem em cada indivíduo singular.


Ao mesmo tempo em que Hélio não escreve para um completo iniciante em filosofia clínica, aquele que tem uma noção da metodologia perceberá neste livro toda a amplitude, força, paixão e confiança que o autor tem no método terapêutico da filosofia clínica, principalmente quando a interseção ou interseções apresentam problemas graves, resistências quase intransponíveis que tanto o partilhante – aquele que faz terapia com um filósofo clínico – quanto o terapeuta enfrentam no decorrer do processo terapêutico ou da vida mesma.

Nada a acrescentar à metodologia da filosofia clínica, nos ensina Hélio, pois tudo o que precisamos essa metodologia nos fornece para toda e qualquer situação que aparecer. Temos de ter um intelecto ativo para compreender os meandros que a própria metodologia nos apresenta. Muitas vezes o mergulho na metodologia e na atuação terapêutica enquanto filósofo clínico é sem qualquer ajuda ou certeza prévia. Simplesmente um mergulho, como um paraquedista em queda-livre ou um mergulhador afundando no desconhecido das profundezas do mar. A boia vem após o mergulho, a ajuda vem após a confiança e o estudo sistemático da metodologia. Mas, nos mostra Hélio, para aquele que faz sua parte nos estudos e práticas da filosofia clínica, até hoje a boia veio mesmo nas piores situações e o paraquedas nunca deixou de abrir.

A construção compartilhada entre o filósofo clínico e o partilhante é a esteira, nos mostra o autor, por onde a confiança, o estudo atento ao mundo do outro e as possíveis boias salva-vidas aparecerão. Não é necessário outro apoio à metodologia da filosofia clínica, pois ela guarda em si todas as possibilidades de diálogo e maneiras de efetivar a construção compartilhada que dará as saídas ao processo terapêutico. Não é exatamente uma confiança de fé cega, mas a confiança ou fé que segue à segurança de uma atividade de atenção constante à nova linguagem que nos aparece do partilhante, do estudo constante da metodologia que está sempre no pano de fundo da epistemologia do terapeuta para dar subsídios ao singular que se revela. É uma fé por efeito de uma atividade constante do terapeuta com a metodologia.


Dentre os capítulos e subcapítulos que seguem o livro encontraremos como linha-guia que apoia a prática da filosofia clínica de Hélio Strassburger, uma apologia ao singular. Aparecem no livro vários adjetivos e maneiras de se referir ao indivíduo singular, tais como inédito, original, irrepetível. Também percorre todo o livro a atividade terapêutica enquanto uma aprendizagem constante, sendo o filósofo clínico não um “doutor do saber”, mas como aquele que, na construção compartilhada, aprende junto (às vezes até mais!) com o outro. Não há saber cristalizado no filósofo clínico que sirva de apoio para outra terapia com outra pessoa. Essa incompletude do ser terapeuta é o que mantém ele na virtude da humildade e da atividade fundamental do filosofar, a admiração, nos adverte o autor.


Enquanto terapia, a filosofia clínica, nos diz Hélio, é uma forma de libertação das algemas da linguagem universal, do comum, da aceitação do “normal” e do “correto”. Ao dar completa atenção ao singular e às suas idiossincrasias a metodologia permite ao outro se apresentar de qualquer forma e sob qualquer expressividade, e convida o terapeuta a ser de várias formas frente à multiplicidade de singulares que aparecerão para uma construção compartilhada.
A Introdução e os capítulos finais – Bilhetes Premiados, Filosofia Clínica no Café Filosófico – e a entrevista de Hélio cedida a Diego Baroni Menegassi mostram os horizontes existenciais do pensamento e da prática do terapeuta. Na entrevista o autor mostra de forma abrangente sua caminhada nestes quase trinta anos de estudos e prática constante enquanto terapeuta da filosofia clínica.

No Café Filosófico mostra o privilégio de poder ter atuado nestes encontros e divulgar ainda mais sobre a fundamentação da filosofia clínica e seus autores. Aproveita para dar um resumo sobre a metodologia da terapêutica. Em Bilhetes Premiados, sem uma introdução mais específica, nos mostra fragmentos de um caso terapêutico na perspectiva do partilhante e de suas andanças nos caminhos e descaminhos da estrutura de pensamento. É quase um minicurso sobre a terapêutica e o método, para quem já tem alguma prática ou conhecimento sobre a filosofia clínica.


Não há efetivamente uma “conclusão” na obra de Hélio, o que seria exatamente um contrassenso em se tratando do ser terapeuta que ele é. Como bom filósofo investigador das coisas da vida e como terapeuta investigador da singularidade humana, sabe ele, e já deixou isso evidente durante o livro, que os interstícios, os quase, os desvios são tão ou mais importantes ou valorosos do que o estabelecido, o fechado ou a conclusão. Para quem faz algum tipo de curso ou leitura de filosofia clínica, o livro de Hélio Strassburger é um apoio fundamental para quem quer um dia ser terapeuta dessa nova metodologia libertária da singularidade.

(Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://drive.google.com/file/d/1hVsY7h8AbnZmMXUHFSEmPJ7NoY9u4BOU/view )

Uma perspectiva prática da recíproca

Paula Zabatiero

A metodologia da Filosofia Clínica contempla elementos que constituem a estrutura de pensamento e os modos de agir de cada pessoa. Alguns elementos, como a inversão e a recíproca, podem estar tanto na espacialidade intelectiva quanto nas ações do indivíduo. Simplificadamente, inversão é o movimento de trazer o outro ao seu próprio mundo, enquanto a recíproca é ir em direção ao outro.

No espaço terapêutico, a recíproca pode fazer parte da qualificação da relação terapeuta/partilhante, sendo utilizada pelo terapeuta que escuta, acolhe e, principalmente, se isenta de suas perspectivas do mundo e das relações diante do discurso existencial do partilhante. Assim, considera essencialmente o outro para possibilitar o espaço da construção compartilhada.

Em um esboço preliminar, através do discurso existencial do partilhante, a recíproca pode aparecer como tópico importante da estrutura de pensamento. Com a evolução do tempo terapêutico, através do acesso à historicidade, às circunstâncias, à linguagem compartilhada e a outros tópicos e ações presentes na malha intelectiva do partilhante, por vezes o que o discurso apresentava como recíproca acaba por qualificar-se como inversão.

Na experiência da prática terapêutica, quando acontece a compreensão da posição de inversão pelo partilhante, antes vista por ele como recíproca, pode acontecer um processo autogênico tanto na relação com o outro e seus interesses sociais, como na relação consigo mesmo. Questionamentos de como o mundo parece, quem sou, quais são os significados, verdades e influências agendadas na estrutura de pensamento podem propiciar uma revolução na malha intelectiva. “Ao se tornar íntegro consigo mesmo e vivenciar uma nova condição existencial, o sujeito pode mudar o lugar onde vive, o nome, valores, verdades subjetivas. Esse ensaio, ao modificar a autogenia, abre perspectivas e ressignifica a representação de mundo ao seu redor.” (Hélio Strassburger, 2021 p.173)

Através de deslocamentos a momentos da historicidade, a compreensão do que antes vinha a ser a relação com outro passa a ser vista como a relação apenas consigo. A partir da desconstrução dada pela descoberta sutil da variação da sua própria estrutura e das ações que a acompanham, o partilhante se vê desconfortável no próprio endereço existencial, e o processo autogênico se instala para a reconstrução do eu no mundo.

Neste momento, diante de tamanha ressignificação pessoal, a importância do acolhimento terapêutico é crucial. Cabe ao filósofo clínico compreender o novo lugar habitado pelo partilhante e colocar suas intervenções pautadas no contexto da historicidade compartilhada no espaço terapêutico.

Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/06/revista-da-casa-da-filosofia-clinica.html )

Onde se esconde o que aparece?

Por Hélio Strassburger

A ideia de uma região inconsciente como algo inacessível por inteiro, e com a qual se trava algum contato por atos falhos, lapsos, e outros mecanismos, ainda encontra seus adeptos. Talvez porque, até então, não se tivesse outros recursos metodológicos a atividade clínica.
Uma das críticas a essa forma de pensar, é a de que o inconsciente, ao ser algo desconhecido, poderia comandar – mesmo quando não se saiba – a vida das pessoas. Em outras palavras, inexistiria um sujeito em sua própria história.


Se reconhece a existência de um território inexplorado na alma humana, o qual se manifesta de um jeito próprio em cada pessoa. Por esse continente transitaram mentes brilhantes: Mesmer, Charcot, Freud, Anna Freud, Jung, Lacan, Melanie Klein, … Talvez a impossibilidade de um mapeamento subjetivo universal limite a percepção de que a natureza desse lugar (definido como inconsciente) se apresente pela singularidade.


Esse esboço trata das possibilidades de emancipação da pessoa como titular dos seus dias. Para filósofos existencialistas como: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, inexiste uma essência a priori ao aparecimento e desdobramentos da vida. O que se escreve com a biografia de cada um é um devir numa historicidade que lhe pertence. Com essa escola se aprende que a essência é consequência da existência.


Por outro lado, na mesma direção, a investigação prossegue. John Searle em suas obras, especificamente: Intencionalidade e a Redescoberta da Mente, amplia a busca de superar a ilusão de um inconsciente. Seus textos demonstram que as ideias, escolhas, atitudes, estão relacionadas com a circunstância de cada um, inseridas num projeto em andamento. Isso se realiza através de um filtro, por onde a expressividade encontra os papéis existenciais de que necessita.


Seu aspecto se assemelha a uma bússola, para orientar a relação da pessoa com ela mesma. Não como algo distante de si, mas como integrante de sua estrutura de pensamento. A cada novo episódio, podem surgir ângulos desconsiderados da própria subjetividade, ressignificando modos de pensar, agir, existir.


Os movimentos oferecidos pela intencionalidade, associam tópicos estruturais, até então, à margem do centro das atenções. Uma dialética subjetiva reivindica a compreensão dos seus jogos de linguagem, num convite a sua fonte de originais. Em um fenômeno humano multifacetado, trata-se de acolher, descrever, traduzir o que se diz naquilo que se manifesta.

(Texto originalmente escrito na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://drive.google.com/file/d/1mEzGG8U5AupY79jaAyNnTCQItjvQkmoE/view )

A escuta compreensiva na clínica filosófica

Por Paulo Alves Filho

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo.


De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica.


Articulando os elementos citados acima cria- se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui-se o impeditivo do acolhimento através de determinados grupos ou conceitos provenientes de outras áreas do saber, como no caso da medicina, que, por sua vez, adentram a linguagem social. Mais do que isso é importante saber de dentro da visão daquele a quem escutamos qual horizonte de significados são atribuídos a tais conceitos. Institui-se a preservação ao partilhante em relação ao próprio terapeuta, pois ele deve estar afastado de si mesmo. Sua postura se assemelha a um livro em branco, onde a história que o preencherá está no escutado. A terapia na Filosofia Clínica é no tempo e dentro dos limites demarcados pelo partilhante. Fazendo com que, por vezes, o ambiente terapêutico torne-se um lugar confortável para se falar de conteúdos que podem não ser, necessariamente, agradáveis.


A importância do conteúdo trazido aos encontros se dá no contexto em que é ele o fio condutor quem transporta o método e para entender aquele que se entrega na fala são necessárias duas fases de tradução: na primeira o terapeuta ouve o conteúdo e o traduz aplicando a metodologia e na segunda o que foi escutado é traduzido de volta a linguagem do partilhante e devolvido para que ele diga se está correto ou não. O respeito a essa forma de cuidado no amparo aos fenômenos humanos é fundamental para estabelecer a interseção entre terapeuta e partilhante, para que ele se sinta à vontade e para que a terapia aconteça dentro de seus moldes.

(texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/search/label/Revista%20Casa%20da%20Filosofia%20Cl%C3%ADnica )

FENOMENOLOGIA NA FILOSOFIA CLÍNICA

Por Fernando Fontoura (texto originalmente escrito para a REvista da Casa da Filosofia Clínica em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2022/03/revista-casa-da-filosofia-clinica-ed00.html )

Algumas perspectivas psicológicas se denominam ou têm no nome a palavra fenomenologia ou fenomenológica.


No vídeo sobre psicologia fenomenológica com prof. Tommy Goto (https://www.youtube.com/watch?v=_RR9dHtF3e4&t=196s ) assumindo que a psicologia fenomenológica tem Edmund Husserl como fundamento da fenomenologia, pergunta-se onde está a fenomenologia nas abordagens psicológicas, pois “[..] se parte de pressupostos não pode ser o método fenomenológico, porque o método fenomenológico, de cara, já tem que eliminar os pressupostos. Então, se já tem uma prática psicológica que já considera esse pressuposto, então não pode ser método fenomenológico. Afinal de contas, então, o que é a psicologia fenomenológica”?


O problema levantado por este professor de psicologia aparece porque a psicologia quis colocar a fenomenologia enquanto método terapêutico ou inserida dentro da metodologia terapêutica já estabelecida pela psicologia. A psicologia tenta usar da fenomenologia como método ou apoio metodológico ao já preexistente pressuposto psicológico. E assim, ambos se excluem, pois o método de investigação fenomenológico husserliano elimina, de antemão, qualquer pressuposto ou julgamento de valor, normativo ou moral para sua investigação. E a psicologia já traz em sua metodologia pressupostos de valor, normativos ou morais. Por mais “aberta” que seja a linha psicológica, ela está apoiada, nem que seja minimamente, em algum pressuposto de valor ou normativo ou moral. E é justamente isso que a fenomenologia husserliana quer evitar.


A filosofia clínica resolveu esse problema colocando a fenomenologia não na metodologia, mas na postura do terapeuta. Portanto, a fenomenologia na filosofia clínica, é anterior à investigação metodológica e por isso não influencia na investigação. A fenomenologia apoia a postura terapêutica do terapeuta para que ele faça sua redução fenomenológica dos seus juízos de valor, morais ou normativos, e, assim, não interfira na aparição do fenômeno. É ele, o terapeuta, que faz a epoché, em função de não interferir ou contaminar aquilo que aparece do outro. Deixando, assim, espaço para a criação e revelação da singularidade.

É um erro chamar a metodologia terapêutica da filosofia clínica de fenomenológica, pois a fenomenologia não faz parte do método. O método é composto de três eixos, sendo exames categoriais, estrutura de pensamento e submodos. No método não está inserido a fenomenologia. Ela está anterior ao método, na maneira ou postura do terapeuta de “encarar” o método, é onde está a fenomenologia, a hermenêutica da compreensão (Gadamer) e a analítica da linguagem (Wittgeinstein).
A filosofia clínica, metodologicamente, pode ser dita estruturalista, não fenomenológica.

Uma proposta de emancipação

Por Miguel Angelo Caruzo (texto originalmente escrito para a Revista da Casa da Filosofia Clínica, edição 00 em https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/search/label/Revista%20Casa%20da%20Filosofia%20Cl%C3%ADnica )

Em sua recente obra, Hélio Strassburger (2021, p. 26) relata que “a possibilidade
de emancipação de pessoas, para além da camisa de força da classificação
tipológica” chamou sua atenção na proposta da filosofia clínica uma vez
que “ela oferece uma abordagem de acordo com o fenômeno da singularidade”.
Como se daria essa possibilidade?


Trata-se, entre outros aspectos, de uma inspiração de Protágoras, segundo o
qual o “homem é a medida de todas as coisas” (PROTÁGORAS in: MARÍAS, 2004,
p. 41), atualizada em Schopenhauer para quem “o mundo é minha representação”
(SCHOPENHAUER, 2001, §1). Isto é, há um modo peculiar, irrepetível, de
realização de nossa experiência do mundo e de nós mesmos. Há uma série de
nuances dessas vivências com suas consequências no modo como se interpreta
aquela que seria sua realidade. “Em suma, cada pessoa tem sua própria representação
de mundo” (CARUZO, 2021, p. 32).


Ao se considerar a singularidade das experiências, é inevitável tomar como
consequência o universo de características incomparáveis de cada indivíduo.
Por conseguinte, não é possível comparar ou criar critérios universais sobre os
princípios que regem as ações, os pensamentos, os valores etc. de uma pessoa.
Há, portanto, a singularidade: “É esse o critério que ela [isto é, cada pessoa,] usa
para vivenciar as coisas que estão relacionadas a essa ideia” (PACKTER, 1997,
p. 16).


Tais concepções poderiam suscitar acusações de solipsismo se não fossem
considerados os elementos contextuais e históricos. Assim, “o idioma da pessoa,
seus hábitos, sua época, a política e os dados sociais da localidade onde
viveu, a geografia, o contexto religioso, histórico, entre outros aspectos, podem
ter importância” (PACKTER, 1997, p. 26) para localizar existencialmente a pessoa
e o peso subjetivo que esses aspectos trazem para sua vida.


Quando os critérios tipológicos cedem espaço para a abertura à singularidade,
suas circunstâncias e modos de interagir com seu mundo, a emancipação
encontra espaço. O ganho ocorre quando para cada desafio vivido, os caminhos
são propostos segundo cada caso. Os princípios universais cedem espaço para
modos de agir interna ou externamente usados ao longo da própria história da
pessoa (STRASSBURGER, 2021, p. 97) ou, quando novos modos são acrescentados,
deve-se cuidar para que encontre correspondência na estrutura de quem
recebe (CARUZO, 2021, p. 127). Assim, quem somos, de onde viemos, para onde
vamos, como vivenciamos o que nos ocorre e como agimos diante disso são
aspectos reveladores de nossa singularidade.

Um olhar para a singularidade

Por Dioneia Gaiardo

Pensar a singularidade é um exercício de ver que “A vida insinua-se de um jeito único na subjetividade de cada pessoa, lugar privilegiado para decifrar os enigmas da natureza (…)”, os enigmas de sua própria natureza, da natureza das coisas e do mundo. Aí, no fenômeno da singularidade, há espaço para o “exótico aparecimento” e quem sabe por esses caminhos possamos acessar alguma identidade, alguma integridade sobre quem somos, um pouco mais leves das bagagens impostas.


Há quem busque comparações e generalizações ao longo da vida, há quem se adapte bem a esse modo de ser e ver as coisas, de ler o mundo através de termos gerais. Há quem se sinta completa ou parcialmente preso por essas tipologias, classificações e diagnósticos e, no entanto, careça de um outro tipo de olhar, o singular, ainda ofuscado, escondido em algum recanto seu ou do mundo, e sabe que algo em si fica sem espaço para transbordar diante de uma sociedade viciada em padrões, muitas vezes camuflados em discursos sobre valorizar a diversidade ou afirmações como “devemos ser diferentes”. Não devemos ser diferentes, já o somos e sempre seremos. Por mais que possamos compartilhar, ainda assim, as circunstâncias e significações são únicas.

Se não nos damos conta disso, o risco é nos tornarmos reféns da produção do igual imposta pelos padrões de normatividade que gera também a necessidade de sermos diferentes. E “essa vida” que nos joga de um lado a outro, que nos suprime em padrões convencionados/impostos é a mesma que nos obriga a sermos diferentes para que possamos, enfim, sermos reconhecidos. Antes ser um desconhecido na multidão, mas que conhece, ao menos um pouco, a si mesmo. Antes perceber que a produção do igual e do diferente está a serviço de mercados extremamente lucrativos – o mercado humano, da mente humana, do corpo humano…


Nesse sentido, a Filosofia Clínica evidencia que “As coisas podem adquirir propriedades diversas no vislumbre das singularidades”. Assim, a carência, o que nos falta, parece-me que é justamente o exercício da singularidade. O olhar extraordinário, surpreso, suspenso, desacomodado, incerto, investigativo, descontente, absurdo, instigante, mágico, ingênuo, a admiração, como diria Gerd Bornheim: “Na admiração, verifica-se um simpatizar, no sentido etimológico da palavra, um sentir unido ao real como uma presença (…) longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença.”

* Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica. Para edição completa da revista, acessar Revista da Casa da Filosofia Clínica – Editora Pragmatha