A fundamentação, a contribuição e os equívocos em Filosofia Clínica

Por Miguel Ângelo Caruzo

A filosofia clínica é um método terapêutico. A inquietação que levou Lúcio Packter a sistematizá-la ocorreu diante de sua necessidade de auxiliar pessoas em suas dores, conflitos e demais demandas existenciais. O construto metodológico da clínica filosófica foi elaborado na medida em que auxiliava Packter a compreender as pessoas as quais atendia e a encontrar as melhores maneiras de ajudá-las. Desde então, não foi a teoria baseada em profundas reflexões sobre quem é o ser humano que fundamentava a prática; foi a prática – em diálogo contínuo com as teorias da tradição filosófica – que deu subsídios para a construção da abordagem posteriormente denominada filosofia clínica.


Diante disso, há três aspectos a serem levados em conta quando se trata de pensar o âmbito teórico da filosofia clínica. O primeiro deles diz respeito a compreender os fundamentos dessa sistematização. Em seguida, consideramos os acréscimos posteriores com a finalidade de aprofundar o método. Por fim, cabe refletir sobre alguns enganos ou equívocos dos que buscam fundamentá-la.


Quanto ao fundamento, a filosofia clínica deve ser entendida como aquilo para a qual foi pensada: uma abordagem terapêutica, um método, cujas bases são filosóficas. Lúcio Packter leu muitos filósofos dos vinte e cinco séculos de tradição do pensamento e foi elaborando as bases de sua terapia filosófica. Cada autor legou pressupostos (como, por exemplo, a ideia de representação de mundo e da crítica aos critérios de normalidade e patologia) e possibilidades de compreensão de contexto (exames categoriais), modos de ser (estrutura de pensamento) e agir (submodos) de cada indivíduo.


É necessário compreender que do mesmo modo em que em todo construto filosófico os termos não são compreendidos a priori, mas dentro da obra do filósofo que a apresenta, o arcabouço conceitual da filosofia clínica deve ser compreendido a partir dela própria e não dos filósofos que a inspiraram. Este recurso pode auxiliar no processo de compreensão, mas levando em conta a adaptação – algumas radicalmente modificadas – para a prática de consultório. Portanto, para entender a fundamentação, não se pesquisa os filósofos recorridos por Packter; a busca deve basear-se nas primeiras referências da construção desses fundamentos como, por exemplo, nos Cadernos dos anos de 1990.


Outro ponto importante diz respeito aos aprofundamentos da filosofia clínica. Embora a clínica filosófica tenha sido sistematizada e fundamentada, ela jamais será uma proposta acabada. Assim, cabem os infindáveis aperfeiçoamentos a fim de beneficiar tanto os filósofos clínicos quanto, e sobretudo, os partilhantes. A filosofia clínica não é uma abordagem terapêutica fechada – assim como nenhuma outra está concluída – e, por isso, deve se manter aberta aos devidos e necessários aprofundamentos. Nesse sentido, as obras filosóficas, literárias, teóricas de modo geral, podem auxiliar nesse aspecto. Não para fundamentar, no sentido de dizer qual perspectiva filosófica embasa alguma categoria, tópico ou submodo (pois isto já foi realizado), mas para avançar nas pesquisas, esclarecimentos, viabilizações de novos aprofundamentos etc.


Cabe ressaltar que um método cuja finalidade é prática, passa a ser beneficiado na medida em que tais trabalhos consideram o “chão de fábrica” do consultório. O próprio Lúcio dizia que precisou abrir mão de teorias que lhe eram caras por não serem efetivas na prática. Quanto mais teórico e “universalizador” um pesquisador da filosofia clínica se torna, mais se põe em risco de se distanciar do olhar que enxerga o outro em sua singularidade.


A atividade supramencionada, a saber, a dos aprofundamentos, pode ser confundida com fundamentação. Como dizer de onde vieram categorias, tópicos e submodos por meio de filósofos que pensamos ser as bases de tais elaborações se já temos, por exemplo, os Cadernos a dizer onde estão essas fontes e de que modo foram amplamente modificadas para fins de adaptação ao trabalho de consultório? A propósito, ninguém entenderá os conceitos utilizados na filosofia clínica se forem ler diretamente os conceitos utilizados e elaborados pelos filósofos dos quais foram inspirados. Pois, tanto o termo conceitual do filósofo em questão quanto o utilizado pela filosofia clínica possuem compreensões, usos e um arcabouços estruturais próprios e, por vezes, bastante distintos.


Além disso, a ênfase na fundamentação teórica sem fins na prática beira ao risco de construirmos uma (má) conjectura a respeito de algo que pouco ou nada servirá para o trabalho do filósofo clínico. Por mais atraente, convidativa e criativa que seja uma formulação teórica na filosofia clínica, se não viabilizar a atividade do filósofo clínico em consultório, empresas ou instituições diversas, provavelmente se terá uma tentativa de fazer (uma má) filosofia.


Uma ênfase teórica que não privilegia a finalidade para a qual a clínica filosófica foi elaborada pode beirar a uma tentativa de elaboração universalizada, por vezes, normativa, arriscando a novidade desse novo paradigma do mundo das terapias, a saber: a irrevogável noção de singularidade. Cabe, portanto, cuidar para não se “florear” muito a filosofia clínica esquecendo-se de quão estéril podem ser as conjecturas e construções puramente teóricas.
Quando tais riscos são observados, é possível entender a fundamentação da filosofia clínica recorrendo às fontes e suas devidas adaptações; colaborar com novos aprofundamentos estabelecendo diálogos com filósofos e teorias que visam aperfeiçoar a prática clínica; e cuidar para não resvalar em belíssimas elaborações completamente inúteis no processo de auxiliar os partilhantes em suas questões existenciais.

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Qual a diferença de fazer terapia com a Filosofia Clínica?

A Filosofia Clínica tem como base de sua metodologia a palavra Singularidade. Singular é aquilo que é irrepetível, como cada folha de uma frondosa árvore. Por mais parecidas que são ao longe, de perto são diferentes uma da outra. Singular também é aquilo que não tem padrão externo a si mesmo para comparação, somente poderia se comparar a si mesmo antes. Por isso mesmo irmãs gêmeas univitelinas, criadas sob a mesma casa e sobre as mesmas vivências têm experiências diferentes da vida, de si e dos outros, pois em seu interior são Singulares. É exatamente isso que a Filosofia Clínica faz em sua terapia: deixa aparecer o singular de cada um sem julgamentos de valor ou normativos. Não há base na filosofia clínica para qualquer teoria sobre como deve ser o ser humano, como deve viver, qual o padrão ou curso “normal” de vida, sentimentos, experiências, comportamentos, etc. Ser Singular é ser único e essa Singularidade é a base do atendimento terapêutico da filosofia clínica, que buscou através de seu sistematizador – Lúcio Packter – exercer uma terapia para cada pessoa Singular.

Leituras Clínicas

Por Dionéia Gaiardo – Filósofa Clínica

“O ponto de vista Partilhante, ao se deixar acessar pelos termos agendados, reivindica um leitor de raridades. O fenômeno terapia aproxima papéis existenciais da clínica com a arqueologia. Sua estética cuidadora, a descobrir e proteger inéditos, mescla saberes para acolher as linguagens da singularidade.” – Hélio Strassburger

O trecho citado está na obra “A palavra fora de si” do professor Hélio e especificamente no texto dedicado “As linguagens da terapia”. Aqui é essencial dar-se conta de que o veículo que nos faz percorrer caminhos dentro do espaço clínico é a linguagem, e nesse sentido, é papel do cuidador dar espaço de passagem e fornecer proteção às cenas que se des-cobrem sessão após sessão, acolhendo o conteúdo.


Durante esses 4 anos de clínica, atendi algumas mulheres (sim, hoje falarei delas). Sou grata pela confiança que depositam no processo clínico, sei dos meus limites de filósofa clínica aprendiz, isso não nos impede de fazer boas construções compartilhadas. Aliás, com algumas delas compartilho a busca pelo aperfeiçoamento de si, com outras compartilho as dores de repressões sociais, negligências, confusões em que nos colocamos, bem como o insurgir-se diante disso, afirmando-se a partir da singularidade, essa coisa sagrada da natureza de cada uma.


Com algumas compartilho a paixão pelas artes, a estética da vida, o poder de transformação. E tem sido incrível, no sentido de fantástico mesmo, acompanhar as autogenias que se desdobram, esses fenômenos que se ensaiam no momento clínico. Interessante observar que algumas vezes os ensaios proferidos nesses instantes, ressoam tal qual foram proferidos, outras vezes, o que aparece é inédito e aí, insisto, faz-se fundamental proteger esses inéditos.
Mas como a filósofa clínica protege os inéditos de cada uma? Deixando ser. Aquilo que se des-cobre, se revela. Da mesma forma como antigamente se revelavam as fotografias. O filme da vida da partilhante está ali, dentro do “negativo” a ser revelado, inicialmente, para ela mesma. Essa que pega nas mãos a imagem de si revelada por si mesma e faz com ela o que quiser, mostra, esconde (guarda), dos outros, de si mesma.


A filósofa clínica é esse ponto de apoio, até que a partilhante reestruture sua sustentação e passe a, não mais necessitar desse ponto como apoio. A partir daí, pode ocorrer uma expansão do seu ser em direção ao mundo, caso isso lhe seja importante. Em alguns casos a expansão de si para si mesma já é suficiente.

O que é a filosofia clínica?

É uma abordagem terapêutica criada pelo médico e filósofo gaúcho Lúcio Packter que a desenvolveu ao longo dos anos 1980 e iniciou a formação no Instituto Packter em meados dos anos 1990. Packter partiu de vinte e cinco séculos de conhecimentos filosóficos sobre a alma humana e a estruturou como um método de abordagem terapêutica.

No âmbito social, a Filosofia Clínica oferece uma perspectiva contra intuitiva nos dias de hoje onde a noção de normal ou anormal, de doença ou saúde está no âmbito daquele que fala por si mesmo, ou seja, o outro e não por padrões externos a ele. Portanto, a Filosofia Clínica não busca nem usa de parâmetros externos ou sociais para compreender ou “encaixar” o indivíduo. A Filosofia Clínica não tem teoria de nada e nem usa de teorias ou autores para compreender o outro. Nossa única “teoria” vem daquilo que cada um fala de si na presença de um Filósofo Clínico. É o Filósofo Clínico que tem que se “encaixar” no outro, e não o contrário. Com uma postura de um antropologista, a Filosofia Clínica procura compreender o outro nos termos, significados, sentidos, linguagem, práticas e valores daquele que narra sua própria história. 

Qual é o diferencial da filosofia clínica?

A filosofia clínica trabalha com o pressuposto da singularidade. Assim, cada pessoa, vista de modo único, não é diagnosticada de acordo com a “norma”. Conceitos como normal e patológico não cabem no processo. E os problemas do partilhante cessarão ou encontrarão alívio por meio de uma construção compartilhada com seu terapeuta. Além de poder ser feita em consultórios, a terapia também pode ser realizada em cafés, praças, parques, enfim, onde o partilhante encontrar ambiente que mais beneficie sua partilha.

O que assegura a idoneidade do filósofo clínico?

O filósofo clínico está submetido ao Código de Ética e ao instituto ou associação a qual é ligado. Além do Instituto Packter, criado pelo estruturador da filosofia clínica, Lúcio Packter, há outras instituições como o Instituto Mineiro de Filosofia Clínica, a Associação Nacional de Filósofos Clínicos, o Instituto Sul Catarinense, o Instituto Interseção, a Casa da Filosofia Clínica e outros. Todos seguem as mesmas diretrizes de atuação.

Quanto tempo leva uma terapia na filosofia clínica?

Estima-se que uma terapia leve de seis meses até dois anos, em sessões que podem iniciar semanalmente e, gradualmente, sendo mais espaçadas para a cada uma ou duas vezes por mês. Mas, como o que conta é a singularidade, cada caso deve ser analisado individualmente. Porém, é bom destacar que o método visa tornar o partilhante autônomo, de modo que não necessite de longos períodos de terapia, nem dependência do terapeuta. Há casos em que o partilhante, após a alta, busque o consultório de tempos em tempos apenas para ajustes ou atualizações. Em outros casos, na maioria deles, a alta é definitiva.

Quem pode ser partilhante?

A princípio, não há restrições. A filosofia clínica engloba desde partilhantes psiquiátricos até pessoas que, não se vendo incomodadas com algum problema específico, queiram promover um autoconhecimento. Em geral, os que procuram o filósofo clínico trazem questões sobre relacionamento, família, profissão, vocação, perda, indecisão, sentido etc. Até mesmo partilhantes acompanhados em outras modalidades terapêuticas tradicionais e alternativas (psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais etc.) podem ser beneficiados.