COMPLEXIDADE E HISTORICIDADE NA FILOSOFIA CLÍNICA

por Fernando Fontoura


A fundamentação da metodologia da filosofia clínica já está estabelecida desde sua sistematização no final dos anos 80 pelo seu criador Lúcio Packter. Mas leituras além das que concerne à sua fundamentação servem para dar nova luz à mesma fundamentação, não para alterá-la ou “atualizá-la”. A fundação já está pronta. O edifício metodológico está erguido. Pode-se embelezar ou tentar dar mais ênfase naquilo que já está criado e estabelecido, mas não mexer em suas fundações.


É neste sentido que trago aqui Edgar Morin e sua noção de complexidade. Esta noção jogará luz naquilo que há de fundamental na filosofia clínica, uma de suas vigas principais – sendo a viga mestra a noção de Singularidade -, que é a historicidade. A filosofia clínica é uma terapia que considera fundamentalmente o indivíduo singular na trama de sua história pessoal percebida e contada em primeira pessoa, ou seja, pelo próprio indivíduo que vai à terapia (damos o nome de Partilhante à quem faz terapia com um filósofo clínico). O filósofo clínico atento à essa historicidade consegue, através do método, ter uma descrição geral e ampla do horizonte existencial do outro, ou como chamamos muitas vezes, do endereço existencial do indivíduo. Para que isso? Para circunstanciar a questão que foi trazida para a terapia. A questão em si que fez o indivíduo ir à terapia não veio de geração espontânea, portanto a própria questão tem uma historicidade, uma ou várias circunstâncias que dão a ela seus contornos e, portanto, a substanciam.

Perceber o indivíduo e sua questão relacionado com sua historicidade – contada por ele mesmo -, ao invés de simplificar faz justamente o contrário, complexifica. Mas essa complexidade é fruto da noção de que somos um sistema ou estrutura interna da qual, também está em contato e interação recíproca com outras estruturas que têm também sua própria estrutura interna e que também estão em ligações e interações recíprocas com outras estruturas e…assim por diante. Claro que essas relações estruturais têm um limite, mas o espaço desse limite, se é amplo ou mais restrito, tanto faz, pois o que interessa na filosofia clínica é percebermos essa malha e suas interações complexas. É a partir da historicidade, das circunstâncias, das relações estruturais, portanto, da complexidade que a filosofia clínica descreve a estrutura singular de cada um. Não é um trabalho simples. Requer muita atenção à narrativa do outro, muito estudo das 5 categorias, dos 30 tópicos da estrutura de pensamento e dos 32 submodos (modos de efetivar a estrutura de pensamento) para estar dentro dos conceitos e paradigmas próprios da filosofia clínica e uma postura acolhedora fenomenológica, ou seja, a suspensão dos pré-juízos de valor, normativos, éticos e todos os outros por parte do filósofo clínico.

A metodologia da filosofia clínica é simples, mas a precisão da efetivação da metodologia requer muita atenção da postura própria do terapeuta, essa a parte mais difícil! Neste ponto trago Edgar Morin e sua noção de Pensamento Complexo em seu livro Introdução ao Pensamento Complexo. O que ele combate com sua noção de complexidade é justamente o pensamento simplificador. Escreve ele,

“Vivemos sob o império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração cujo conjunto constitui o que chamo de o ‘paradigma de simplificação’”.

Esse pensamento simplificador tem o objetivo de reduzir o complexo ao simples. Mas qual o problema disso? Bem, o que é a complexidade para Morin?

“A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico”.

Portanto, a questão do livro de Morin é como considerar essa complexidade de modo não simplificador. Mas por quê? Porque a complexidade não pode ser simplificada. Algo difícil pode ser simplificado. Um foguete da NASA pode ser simplificado separando em pequenas partes, fazendo uma disjunção e análise de cada parte e depois compreender o todo a partir dessa dissecação. Isso não pode ser feito na complexidade, pois ela é, como ele colocou acima, o próprio tecido emaranhado das relações e interações humanas, sociais, políticas, éticas, emotivas etc. de cada indivíduo. Lidar com a complexidade é não dissuadi-la de ser o que é, mas lidar com ela assim mesmo. Escreve ele,

“Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera o reflexo do que há de real na realidade”.

Para tanto, o objetivo do pensamento complexo é

“[…] dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo (um dos principais aspectos do pensamento simplificador); este isola o que separa e oculta tudo o que religa, interage, interfere. Neste sentido, o pensamento complexo [ao contrário do pensamento simplificador] aspira ao conhecimento multidimensional”.

Portanto, o pensamento complexo é não redutor e não fragmentário, mas considera a tessitura complexa da malha da vida onde está o indivíduo de modo substancial e não por acidente. Outra forma de fragmentar e “controlar” o real é a hiperespecialização através de fórmulas hiper-redutoras, essas fórmulas sendo matematizáveis ou não. Essas fórmulas hiper-redutoras do real funcionam como um atalho cognitivo. Um atalho cognitivo poupa tempo, recursos, energia epistemológica e dá uma sensação de que, poupado tudo isso, temos a resposta para a situação. Morin chama isso de inteligência cega. Há um processo de inteligência no atalho cognitivo, mas provoca mais pontos cegos do que explica amplamente o fenômeno. Um paradigma desta inteligência cega produzida por atalhos cognitivos é a psiquiatria médica. Reduz de forma radical e irresponsável toda a gama de complexidade do comportamento humano na tessitura complexa de sua história e contextos e circunstâncias em itens do manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o tal DSM (sigla que vem do inglês). Outras disciplinas fazem isso também tais como a história, a biologia, a sociologia, a filosofia, entre outras. De uma forma ou de outra, acabam por fabricar atalhos cognitivos para explicar o complexo em termos do simples. Mutilam o real.


A filosofia clínica não usa de atalhos cognitivos, mas percorre o caminho da complexidade sem ter a intenção de explicar ou solucionar redutivamente as questões existenciais que aparecem em terapia. Percorremos junto com o partilhante a sua historicidade singular e complexa. A filosofia clínica não pretende “desvendar” as “profundezas” do intelecto, espírito, alma, seja como quiser chamar, do indivíduo ou do ser humano em geral. É uma terapia singular, que só tem validade naquela interação também singular entre filósofo clínico e partilhante. Não há atalhos, não há como o filósofo clínico “usar” ou “aproveitar” o que aparece em uma terapia com uma pessoa para outra, em outra terapia. Cada construção compartilhada entre filósofo clínico e partilhante tem validade epistemológica somente nesta relação, nesta interação.

É por isso que o filósofo clínico não para nunca de estudar, de conhecer, de aprofundar seu domínio no método. Pois o método em si é vazio e sem validade alguma, mas só se estabelece significativamente em contato com o outro e para cada indivíduo é uma terapia nova, diferente.
Portanto, a filosofia clínica aceita o pensamento complexo de Edgar Morin e considera o indivíduo embebido em sua malha histórica que perfaz seu horizonte existencial inigualável.

Para a próxima vez podemos pensar, então, que, como a filosofia clínica aceita a complexidade e não usa de atalhos cognitivos, ela é então uma terapia demorada. Ledo engano! Em minha prática de terapeuta e de ser terapeutizado por muitos e muitos anos por algumas outras terapias e hoje por terapeuta da filosofia clínica, a assertividade que a filosofia clínica exerce na complexidade faz dela uma terapia, não breve em si, mas não demorada em si também. Tudo depende da interação entre filósofo clínico e partilhante, o objetivo da terapia (que quem dá é o partilhante) e, fundamentalmente, o nível de acuidade ao método do próprio filosofo clínico.

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Publicado por epochefilosofiaclnica

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